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sábado, 15 de janeiro de 2011

Liberdade como não dominação - parte VIII

3.1 Liberdade, Igualdade e Comunidade


Pretende-se, aqui, examinar os atrativos que possui a não-dominação quando colocada como ideal político. Este ideal é igualitário e comunitário, vindo ao encontro do Revolucionário francês e apoiando o vínculo havido entre liberté, de um lado, e égalité e fraternité, de outro. Ressalte-se que, para bem compreender tais assertivas, necessário será conhecer o ideal de Aufklãrung (Esclarecimento), presente na filosofia kantiana e próximo do pensamento de Rawls[1].

3.2.1 Um Ideal Igualitário: a Igualdade Estrutural


Há, inerente à República, a proposta inclusiva de que cada individuo vale por si mesmo e em igualdade com outros, não sendo possível estabelecer patamares de desigualdade entre membros de uma mesma sociedade[2].
Necessário é dizer que um regime republicano deve maximizar a não-dominação e, para isso, deve evitar toda e qualquer iniciativa que tolere uma desigual intensidade de não-dominação entre os atores sociais. Isso não implica que se deva eliminar o alcance desigual de não-dominação, buscando-se uma igualdade de recursos materiais. Não se está obrigando – e deve-se dizer que não é desejável – a República a abraçar o igualitarismo material, mas sim o igualitarismo estrutural. Pode até ser necessário reduzir as desigualdades materiais, e por razões próprias à República, mas esse foco não é tão independente de contingências empíricas como o é o foco estrutural.
O que leva a sustentar a posição de igualdade estrutural é que a intensidade da liberdade como não-dominação de que desfruta uma pessoa em sociedade está umbilicalmente ligada ao poder de que desfrutam os outros e de seu próprio poder. Os poderes de uma pessoa devem ser entendidos como aqueles fatores que podem incidir sobre o tecido político, jurídico, social e econômico. A intensidade com que alguém vive a liberdade como não-dominação não está só em função dos poderes que detém para rechaçar ou dissuadir a interferência arbitrária de outrem, mas, também, em função dos poderes que a outros pertencem. Afirma-se que o valor absoluto da intensidade de não-dominação de que desfruta uma pessoa está em função do valor relativo dos poderes; de sua taxa de poder no conjunto social.
Ao sustentar o aspecto igualitário da liberdade como não-dominação está-se de novo em contacto com a grande tradição republicana. Pois mesmo no começo se restringindo a poucos, jamais deixaram tais pensadores de reafirmar a necessidade de igualdade entre os cidadãos. A igualdade buscada era uma igualdade diante da lei e ante todo e qualquer instrumento capaz de reafirmar a liberdade, não implicando igualdade material. Entretanto, todos afirmaram a necessidade de se restringir a riqueza dos muitos ricos e poderosos, como garantia de igual liberdade[3]. O compromisso com a igual liberdade não era um contrato vazio, estava arraigado em seu sistema de valores.

3.2.2 Um Ideal Comunitário


Nas idéias políticas contemporâneas, liberalismo e comunitarismo são vistos como duas alternativas possíveis. O liberalismo acentuando a importância da liberdade individual, os comunitaristas, da superioridade do sentimento de pertença a uma comunidade. O liberalismo busca um estado que se abstraia das procedências comunitárias e culturais de sues membros – um Estado neutro quanto às possíveis interferências – e trate igualmente todos os cidadãos. O comunitarismo busca um estado profundamente inserido no modo de vida da comunidade, sendo interferente, não-neutro, e que gere adesão e compromisso dos cidadãos.
Aqui, o Republicanismo tem de se diferenciar das duas concepções políticas. É certo que, como os liberais, os Republicanos – tendo em vista o ideal político de não dominação – tendem a ver o Estado como neutro, imparcial, preservando e colocando como bem primário a liberdade. Apesar disso, o ideal de não-dominação é um ideal comunitário, não no sentido de que o Estado seja parte integrante da comunidade, mas no sentido de que seja um bem, resguardada a neutralidade estatal, cuja valoração pode-se esperar de todos, ou ao menos de quase todos, numa sociedade pluralista.
Isso não importa em ser comunitarista, no sentido desejado pelos pregadores dos ideais comunitaristas. Significa sim, aquilo que John Rawls (2000) chama de bem primário. Os ideais republicanos devem pressupor a prioridade da justiça sobre o bem, no sentido de que para serem aceitas e plausíveis as idéias de bem, deve-se respeitar os limites da concepção política de justiça. Essa concepção pode ser compartilhada por cidadãos livres e iguais e não presume uma concepção compreensiva de bem.
Para Rawls (2000), uma sociedade bem ordenada não é uma comunidade, nem é uma associação. Para tanto demonstra a existência de duas diferenças básicas entre associação e sociedade bem ordenada: a primeira é que uma sociedade bem ordenada deve ser um sistema social completo e fechado, ao passo que a associação é um sistema social incompleto e aberto; a segunda é que uma sociedade bem-ordenada não tem fins e objetivos últimos, o que é o motor de uma associação.
A concepção rawlsiana de bem é uma idéia de bem como racionalidade, diversa de uma visão compreensiva. Tal concepção se constrói sobre dois eixos: a um, os membros de uma sociedade têm ao menos uma intuição de qual seja seu plano racional de vida e à luz desse ordenam recursos e esforços; a dois, uma concepção política de justiça, para ser factível e servir de base de justificação para os cidadãos, deve incluir a vida humana e a satisfação das necessidades e propósitos de cada indivíduo como um bem geral, e situar a razão como princípio básico da organização político social.
O Bem como racionalidade é uma concepção política que, conjuntamente com outras idéias, cumpre duas funções: ajuda a identificar uma lista de bens primários e capacita a especificar a motivação das partes como racional. A isso Rawls chama teoria fraca dos bens, em cujo corpo se enquadram os bens primários[4]. Esses bens são valores comuns, os valores de uma cultura pública da sociedade e cuja distribuição é regulada pelos princípios de justiça[5].
Para os comunitaristas, o liberalismo e o Republicanismo aqui defendido falham, por um lado, ao não ter em conta a comunidade como elemento essencial para a “vida boa”, permanecendo cegos à valoração participativa de cada indivíduo na comunidade política como um fim fundamental para se alcançar a “vida boa”.  Em suma, não levam, também, em consideração que o ser humano é constituído por valores e compromissos comunitários que não são de livre escolha.
Essas ressalvas não negam o caráter de bem comunitário do ideal de não-dominação. O valor supremo de justiça deve ser a liberdade como não-dominação que – certamente – pode e deve ser partilhado por toda a sociedade. Só que não se coloca em termos de fim último a comunidade, senão a liberdade num contexto não compreensivo, mas e, sobretudo, fundado na Razão.
São essas idéias de igualdade, liberdade e fraternidade, expressos na Revolução Francesa, que movem a República a uma inclusão para além das elites que dela usufruíam. E são os fundamentos de uma concepção racional de justiça capazes de alcançar o consentimento dos cidadãos com vistas à plena realização da não-dominação.


[1] Veja-se nota anterior.
[2] Nestes termos, não se pode falar de sub cidadãos ou super cidadãos: numa sociedade onde a cidadania não é para todos, não há cidadania, mas privilégios.
[3] Por todos, veja-se Montesquieu, Espírito das Leis, Livro VII e XXVII.
[4] São Bens Primários, para Rawls (2000): 1) direitos e liberdades fundamentais que constituem uma lista; 2) liberdade de locomoção e livre escolha de ocupação num contexto de oportunidades diversificadas; 3) poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; 4) renda e riqueza; 5) as bases sociais do auto-respeito.
[5] Assim, Altable (1995,122): “En Rawls hay una definición institucional del bien que hace que éste sea objeto de una concepción política de justicia y no de una concepción moral del mismo. Ello supone un avance con respecto a doctrinas utilitaristas, en cuanto doctrinas comprehensivas, y también con respecto a planteamientos comunitaristas, dado que ninguna concepción comprehensiva del bien es aceptada geralmente por los ciudadanos y por tanto el seguimiento y desarrollo de algunas de ellas por parte del Estado a través de las instituciones básicas le daría un carácter sectario, no admisible desde un liberalismo político como el de Rawls.

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