2“Polis” e “Civitas”: encontros e desencontros
Antes de aprofundar o tema a que se propõe esse estudo, necessário se faz aclarar os conceitos que aqui serão utilizados. Em seguida, um breve estudo acerca da democracia (polis) grega e da república (civitas) romana. Nesse contexto, há que se descortinar o desejo (democracia) e a abnegação ou vertù (república).
O cerne, porém, dessas notas será a liberdade e a tensão, necessária, que deve existir entre maioria e mecanismos contra majoritários que impeçam à maioria surrupiar a liberdade e os bens a minoria, tornando-se opressão, ou corrupção da democracia.
2.1 Liberdade, iliberdade (unfreedom) e não-liberdade (no-freedom)
A República lida, basicamente, com o conceito de liberdade e seus antípodas. Destarte, para que se esclareça o que significa aqui o conceituar a República, há que se distinguir o que seja, para o republicano, liberdade. E o que significam iliberdade e não-liberdade, que se distinguem sutilmente.
De fato, a liberdade, para o filósofo, é um problema, porque se coloca como conflito de duas espécies: o conflito entre necessidade e liberdade e o conflito entre contingência e liberdade.
Todas as teorias éticas buscaram uma resposta ao duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível ao Homem. Daí nasceram três grandes concepções filosóficas do que seja liberdade.
A primeira delas surge com Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, em que a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência). Segundo Chauí (1994, p.360) a concepção aristotélica toma a liberdade como princípio, e faz com que a escolha se dê entre as alternativas possíveis, sendo decisão e ato voluntário. Aqui, contrariamente ao que é necessidade ou contingência, o ato livre ou voluntário torna o agente causa de si, causa integral de sua ação[1].
A segunda concepção de liberdade, desenvolvida pelos estóicos, ressurgiu no séc. XVII com Espinosa e, posteriormente, com Hegel e Marx. Como a primeira, afirma que a liberdade é autodeterminação, mas não colocam a liberdade como ato de escolha da vontade individual, e sim do todo do qual o individuo faz parte.
O todo pode ser a natureza (caso dos estóicos ou de Espinosa), pode ser a cultura (Hegel) ou uma formação histórico-social (Marx). Em todo caso, a totalidade atua segundo princípios, fornecendo-se a si mesma as leis e as normas, sendo a liberdade o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz. Aqui se afasta a oposição necessidade-liberdade, afirmando-se que a necessidade é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta.
Dessa forma, a liberdade humana se dá, a um, quando o Homem age em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade; a dois, porque o Homem é parte do todo e, portanto, racional e livre como ele, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa do todo. Isso significa que o Homem pode conhecer as condições, causas e modo de determinação das ações humanas, permitindo – graças a esse saber, que o Homem aja também sobre elas.
A terceira concepção busca conciliar as duas grandes correntes, afirmando que, conforme Chauí (1994, p. 362), a liberdade humana não é poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, pois que as opções são condicionadas pela totalidade natural e histórica em que se situa o Homem. Entretanto, a liberdade é um ato de escolha entre as possibilidades abertas. Não se trata de querer algo, mas de fazer algo. Introduz-se aqui a noção de possibilidade objetiva.
Vistas as três grandes concepções de liberdade, há que se fazer uma distinção entre iliberdade (unfreedom) e não-liberdade (no-freedom). A primeira seria a falta de liberdade devido à subordinação/submissão; a segunda, pela dominação. No primeiro caso, tem-se a interferência indevida, ou possibilidade, de indivíduos ou instituições mais poderosos sobre outros, no segundo, tem-se a escravidão, total dominação. Implica dizer que pode haver interferência sem dominação, dominação sem interferência e dominação com interferência. Explica-se tal distinção pela relação senhor-escravo. O senhor domina o escravo, mas não interfere em suas decisões. Tal dominação é absoluta porque o senhor pode fazer com o escravo o que desejar, mas se haverá interferência ou não pelo senhor na vida do escravo, é algo que só ele poderá decidir. Pode ainda alguém não ser dominado, mas permitir que uma instituição ou alguém interfira nos seus assuntos como gestor ou procurador, numa relação de quantidade.
Isto posto, há que se afirmar que o ideal republicano de liberdade não pode ser um ideal de liberdade como não interferência (liberalismo) nem a possibilidade de interferência incontida do Estado na vida do cidadão. O ideal republicano deve ser um ideal de não-dominação ou, como se queira, um ideal de não-servidão. [1] Nesse pensamento da autodeterminação do agente se inserem a linha Kantiana e de Sartre, ainda que por motivos diferentes, radicalizando a possibilidade de o individuo ser propriamente construtor e agente de suas opções livremente decididas, em conformidade com a razão.
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