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sábado, 15 de janeiro de 2011

Liberdade como não dominação - parte V

A questão das melhores instituições para a liberdade não se colocaria como questão aberta em um contexto deontológico, pois que, se determinadas instituições respeitam o ideal de não-dominação em um contexto, tenderão a respeitá-la em um complexo de contextos plausíveis. Aqui, a não-dominação promovida pelo Estado se vale de meios empiricamente mais eficazes, quaisquer que sejam. A esse respeito, Hamilton, discorre n’O Federalista:
A distribuição correta de poder entre diferentes departamentos, a adoção do sistema de controles legislativos, a instituição de tribunais integrados por juizes não sujeitos a demissões sem justa causa, a representação do Povo no legislativo por deputados eleitos diretamente – tudo constitui novidades resultantes dos acentuados progressos dos tempos modernos em busca da perfeição. Criaram-se assim meios – e meios poderosos – permitindo que sejam assegurados os méritos do governo republicano e reduzidas ou evitadas suas imperfeições. A este elenco de particularidades, que tendem a melhorar os sistemas populares de governo civil, aventuro-me – ainda que possa parecer prematuro – acrescentar mais uma (...) refiro-me à “ampliação da órbita” na qual os sistemas têm de girar, em atenção às dimensões de determinado Estado ou às da consolidação de vários Estados pequenos em uma grande confederação. (MADISON et al, 1984, p. 142)

Entretanto, a melhor orientação é que se leia o valor da não-dominação sob uma perspectiva teleológica. Conforme Pettit (1999), um republicanismo teleológico não satisfaria o equilíbrio reflexivo se exigisse ordenamentos intuitivamente objetáveis. Entretanto, um compromisso consequencialista com a liberdade como não-dominação passa pela prova do equilíbrio reflexivo, quanto à organização das mesmas e sua organização em termos políticos. Equilíbrio reflexivo entendido aqui, numa concepção rawlsiana, como um procedimento razoável e racional de construção dos princípios da razão prática conjugados às concepções de pessoa e sociedade, após cuidadosa reflexão. Ou, melhor explicado, o equilíbrio reflexivo se obtém através de ajustes mútuos entre os princípios gerais que parecem prima facie plausíveis e intuições sobre a justiça e injustiça de soluções para casos específicos, abandonando-se as soluções mais débeis, menos racionais.[1].
Assim, a liberdade como não-dominação se define à medida – e na qualidade em – que se está protegido de interferência arbitrária. Ademais, há que se presumir que as únicas proteções possíveis se revestem de um caráter institucional, dando margem ao julgamento dos distintos conjuntos institucionais, inclusive as instituições locais, segundo a sua promoção do ideal político de não-dominação. E essa possibilidade de julgá-las permite, também, reconhecer que a não-dominação efetivada por qualquer conjunto institucional é produzida em sentido constitutivo, não causal, do termo.

2.3 Democracia X República: a questão do desejo


Há que se confrontar, da Grécia e Roma antigas aos dias de hoje, as diferenças e aproximações entre República e Democracia[2].
Na Grécia antiga, em determinado período, a democracia se assume como o regime da maioria dos cidadãos, capazes de participar da ágora e desejosos de possuir e usufruir vantagens – que até então – eram exclusivos da aristocracia, os “bons” ou “melhores”. Sendo formada e conformada por uma maioria de pobres o risco da democracia é que ela oprima e exproprie os outros. A respeito, elucida-se com o ensinamento de Barker (1978, p.301), explicitando o contexto da República de Platão:
(...) as três outras formas oligarquia, democracia e tirania – estão todas baseadas na supremacia do “apetite”, a qual causa um desequilíbrio, em diferente grau, dos outros componentes da alma. Se há três formas diferentes baseadas no elemento “apetite”, deve haver três formas, ou pelo menos três graus de “apetite” – o que Platão confirma. Devemos distinguir em primeiro lugar os apetites necessários (cuja satisfação é benéfica) dos desnecessários (que não trazem o bem, e às vezes levam ao mal). Na primeira categoria, incluímos os impulsos que nos levam à alimentação e à obtenção de tudo o que é necessário para a vida, de modo geral. Esses impulsos são aquisitivos, e podem ser chamados, em conjunto, de “apetite aquisitivo”. À segunda categoria pertence o apetite pelos alimentos requintados e por todos os luxos; são impulsos que levam ao consumo improfícuo, e podem ser denominados de “apetite de prodigalidade”. Tem-se aqui uma base para distinguir a oligarquia da democracia: a primeira se fundamenta no apetite aquisitivo; a segunda, não só nele, mas também no apetite pródigo. Poder-se-ia fundamentar a tirania exclusivamente no apetite de prodigalidade, mas Platão acha que a natureza peculiar da tirania convida a uma análise mais profunda da composição do apetite; e, no começo do Livro Nono da República, ensina a distinguir entre os apetites naturais ou legítimos e os artificiais ou ilegítimos. Estes últimos (...) são o elemento bestial da alma que se manifesta na tirania, e que a tirania gera. (...) Assim, a oligarquia busca a riqueza até perecer decomposta pela riqueza acumulada; a democracia busca a liberdade até que esta, em excesso, a arruína. (...) a democracia, por exemplo, deriva do desejo de se viver como se quer, livremente; a tirania se baseia nos desejos da carne e no “cupido dominandi” que caracterizam as feras.

Há, além do desejo, um outro sentido a aflorar, a ganância que põe de lado o direito, constituído pela lei. Assim, a tirania, a oligarquia e o que – hoje – se chama deformação da democracia[3], têm em comum a primazia do desejo, ou, na linguagem platônica, dos apetites, sobre a lei e o respeito a ela devidos. Bem conduzida, e esse é um risco inerente ao sistema baseado em maiorias, a massa popular se transforma em joguete nas mãos dos grandes oradores, perdendo de vista a tópica republicana, e tende a crer que a única saída é a expropriação dos ricos e que a política nada mais é que instrumento de espoliação do excedente produzido.
O desejo é então, conforme Ribeiro (2000, p.14), em um primeiro plano, “ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência”.
Nas democracias modernas, o desejo cedeu lugar aos interesses, entendidos os últimos em uma perspectiva econômica, contrapondo-se à virtude, aquela ética da convicção explicitada por Weber e que, desde Maquiavel, é desqualificada como inviável no plano político.
A temática republicana radica, diferentemente da democracia, na renúncia às vantagens privadas em prol da coisa pública. Assim, Montesquieu (1996,33) reafirma que a virtude é o princípio básico da República e que[4]:
Quando cessa essa virtude, a ambição entra nos corações que estão prontos para recebê-la, e a avareza entra em todos. Os desejos mudam de objeto; o que se amava não se ama mais, era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo fugido da casa de seu senhor; o que era máxima é chamado rigor; o que era regra chamam-no incomodo; o que era cuidado chamam-no temor. É na frugalidade que se encontra a avareza, não no desejo de possuir. Antes o bem dos particulares formava o tesouro público, mas agora o tesouro público torna-se patrimônio dos particulares.

A questão republicana, que se coloca em destaque, desde o período romano é que aqueles que fazem as leis são os mesmos que devem obedecê-la. Assim Cícero, o grande defensor da República Romana (2004,p. 56):
Quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão; uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com sua situação pessoal, outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu [...] Entregar-se inteiramente à Pátria; não deve ter por finalidade o poder e a riqueza, seus cuidados devem ser tanto pela coisa particular como pela geral; nunca chegar a expor quem quer que seja ao ódio público por falsas acusações, e ser tão seguro ao que prescrevem a honradez e a justiça que antes de se afastar deles estará sempre disposto a afrontar as barreiras arriscando a própria vida.

A República se torna um regime de auto-contenção dos desejos, uma virtude de abnegação, em que aqueles que fazem as leis, não as fazem somente para que outros as cumpram, mas também para si mesmos. Deste modo, num regime republicano não vige o império da maioria, mas o império da lei que – a todos - cumpre reverenciar. Numa linguagem psicanalítica, a democracia seria o id, os instintos e desejos mais selvagens e sem controle; o povo seria o ego, sempre duvidoso de qual caminho seguir, necessitando orientação e quase sempre pronto a afogar-se na satisfação do id; e a República seria o superego, o controle moral e virtuoso que é capaz de botar freios nos instintos, tornando os cidadãos mais capazes e dignos de sobrepor os interesses públicos aos particulares[5].


[1] O equilíbrio reflexivo deve se amparar em pressupostos formais do discurso moral, mas não na perspectiva do construtivismo moral kantiano e sim, numa perspectiva de construtivismo político. É um método possível de acesso à verdade em âmbito individual.
[2] Utiliza-se aqui o pensamento exposto por RIBEIRO (2000), contrapondo-se o desejo ao sacrifício, inerentes o primeiro à democracia, o segundo à República.
[3] Que Aristóteles, nA Política e na Ética a Nicômaco, e Platão, na República e nas Leis, chamam justamente de democracia, caracterizando-a como forma corrompida de poder.
[4] Virtude, aqui, compreendida como vertù, e melhor traduzida como abnegação ou sacrifício.

[5] Lógico que, aqui, não se pretende uma análise profunda da categoria da psicanálise. Entretanto, é perceptível que a linguagem do desejo, aflorada em todo esse capítulo e também a perspectiva do controle, podem ser lidos à luz do pensamento de Freud. Ou ainda, numa perspectiva mais plástica, pela teoria do inconsciente coletivo de Jung.

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