2.2 A não-dominação como ideal político
As distintas concepções de poder se realizam ao produzir diversas escolhas nos pontos de eleição. A propósito, ilustra-o o seguinte esquema:
1. O poder é possuído por um agente (pessoa, grupo, agência) OU por um sistema;
2. Na medida em que essa entidade exerce OU é capaz (real ou virtualmente) de exercer;
3. Influência intencional OU não-intencional;
4. Negativa OU positiva;
5. Para promover um resultado qualquer OU, mais especificamente, para contribuir para a construção de determinadas formas de agir OU modelar as escolhas de determinados agentes.
As distintas concepções, nos extremos, permitem que se fale do poder do agente para fazer com que as coisas aconteçam ou, em outro extremo, o poder do sistema para expurgar da agenda política as revoluções, perpetuando-se.
O poder como dominação existe quando há um agente, pessoal ou corporativo, capaz (realmente) de exercer influência intencional, de natureza negativa ou danosa, para contribuir e modelar o que fazem as outras pessoas. Nesse sentido Pettit pondera que (1999) o poder de dominação é interativo, requerendo – ao mesmo tempo – um agente investido de poder e um agente vítima do mesmo poder, baseando-se na capacidade de dominação, mesmo que não exercido. Nesse sentido, é um tipo intencional de poder, e é, também, um tipo negativo de poder.
A tradição republicana dá ao Estado a tarefa de se construir a não-dominação como ideal político. Assim, a liberdade republicana, entendida como não-dominação, exerce o papel de valor político supremo. A justificativa para o estabelecimento de um estado coercitivo e potencialmente dominante consiste em que, propriamente constituído, é um regime que serve à promoção desse valor. A liberdade é o bem capital da sociedade civil. Não há outro fim legítimo para o Estado que não o de promover a liberdade, sendo este ideal de não-dominação a unidade de medida eficiente para julgar a constituição social e política de uma comunidade.
O projeto de promover a não-dominação incorpora tanto a promoção da intensidade da não-dominação (erradicar os fatores que comprometem a liberdade) quanto expandir o âmbito das opções não-dominadas (erradicar os fatores que, como obstáculos naturais, jurídicos e culturais, as condicionam).
O principal benefício instrumental associado à liberdade como não-interferência (ideal liberal) é a possibilidade de opções livres de estorvo ou inibições intencionais por parte de outros. Sustenta-se aqui que a liberdade como não-dominação proporciona esse mesmo benefício – em medida menor, compensada por três benefícios.
A liberdade como não-dominação promete, não a exclusão de interferência intencional, mas a exclusão de interferência intencional arbitrária, sendo compatível com um alto nível de interferência não-arbitrária, possibilitando um sistema jurídico adequado.
Os que seguem a liberdade como não-interferência tendem a ver o Estado, e a coerção jurídica ou estatal, mesmo que devidamente controlado, como uma forma de coerção tão má em si mesma quanto à coerção proveniente de outras fontes; só a suportam porque o Estado contribui para diminuir o nível geral de coerção. Os adeptos da liberdade como não-dominação vêem a coerção estatal, notadamente aquela que se acompanha de uma estrutura jurídica adequada, como algo não completamente livre de objeções, sendo obstáculo natural e não arbitrariedade. A não dominação oferece a redução de interferência arbitrária e não minimiza as expectativas de interferência, elevando a certeza que se pode ter acerca do que fará ou deixará de fazer o Estado.
Promover esse ideal implica ainda em reduzir a capacidade das pessoas para interferir na vida umas das outras, reduzindo a necessidade de deferência ou antecipação estratégica. Desfrutar de não-dominação sugere que se converterá em conhecimento comum gerando benefícios subjetivos e intersubjetivos.
A liberdade é, também, além de bem instrumental, também um bem primário, na concepção de John Rawls (2000). Esse status de bem primário leva à redução do medo estratégico e de subordinação.
A liberdade é, também, um bem que todos pretendem e valoram como bem diverso da amizade, cumprindo dois requisitos que a amizade não pode cumprir: trata-se de um bem que o individuo não pode conseguir servindo-se de meios privados descentralizados e se trata de um bem que o Estado pode promover eficientemente.
O republicanismo, e o ideal supremo de não-dominação por ele adotado, é caracteristicamente moderno e includente: compartilha com Bentham a certeza de que os Homens são iguais e que qualquer ideal político plausível deve ser um ideal para todos.
A proposta de adotar a não dominação como ideal para o Estado suplanta os receios liberais da não-interferência. No mesmo passo que o ideal liberal, a proposta republicana é motivada pela suposição de que tal ideal é capaz de ganhar adeptos entre os cidadãos de sociedades desenvolvidas, multiculturais, independentemente de suas concepções particulares de bem, atingindo-se o consenso sobreposto. Contra essa suposição, os comunitaristas sustentam que o ideal de não-dominação não é tão neutro como parece – que é ocidental, masculino, ou coisa do estilo – e que, neutro ou não, não é capaz de motivar as pessoas a transcender às divisões de raça, credo ou gênero. A respeito, Pettit (1999, p.132) afirma que os críticos se baseiam na desesperança de que, em sociedades contemporâneas desenvolvidas e pluralistas, possa haver adesão moralmente motivada para além da comunidade. Mas também ignoram os críticos o mais precioso anelo humano de igualdade e dignidade, impeditivos de suportar pretensões de superioridade.
Pode-se entender a não-dominação ou como objetivo que o Estado deva promover, ou como restrição à sua atuação. No primeiro, o Estado deveria se estruturar de tal modo, que a liberdade como não-dominação exigida pelos partícipes do sistema atinja o ápice. No segundo, o Estado se estrutura de maneira a respeitar o valor da não-dominação, não existindo qualquer possibilidade de dominação no ordenamento constituinte do próprio Estado.
Há uma parcela da tradição republicana que sugere uma perspectiva teleológica para o ideal de não-dominação. E todos os teóricos, enfrentando a questão de quais instituições são melhores para a liberdade, colocam-na como questão empírica em aberto, jamais como resposta a priori. Maquiavel, por exemplo, admite que, já sendo corruptas todas as pessoas e incapazes de construir um sistema jurídico adequado, seja possível que a melhor forma de promover a liberdade seria investir de poderes quase absolutos um príncipe. Servindo-se da doutrina de que a saúde do povo é a lei suprema[1], Locke se vê disposto a justificar tanto as prerrogativas reais quanto o direito dos povos à resistência. E Montesquieu está, inclusive, preparado para admitir, por razões empíricas, que a causa da liberdade pode justificar, ocasionalmente, a lei dirigida contra um só cidadão[2].
[1] Salus populi suprema lex, também utilizada pelos adeptos do poder real como de origem divina. Isso implica que – às vezes – é necessário que alguns poderes sejam dados a alguém para manter a saúde política do Estado e a liberdade como não-dominação dos cidadãos.
[2] “Há, nos Estados em que se faz mais caso da liberdade, leis que a violam contra um só, para preservá-la para todos. Assim são na Inglaterra, os bills chamados de atingir. Estão relacionados àquelas leis de Atenas que estatuíam contra um particular, contanto que tivessem sido criadas pelo sufrágio de 6000 cidadãos. Estão relacionadas àquelas leis decretadas em Roma contra cidadãos particulares e que se chamavam privilégios. Só eram decretadas nos grandes estados do povo. Mas seja qual for a maneira como o povo a promulgasse, Cícero quis que fossem abolidas, porque a força da lei só consiste no fato de estatuir sobre todos. No entanto, confesso que o uso dos povos mais livres que já existiram sobre a terra faz com que eu acredite que existem casos em que se deve colocar um véu sobre a liberdade, como se escondem as estátuas dos deuses” (MONTESQUIEU, 1996,p. 213)
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