O PROJETO DE REPATRIAÇÃO DE FUNDOS ILEGAIS:
Uma análise a partir da Constituição
[legalidade] Significa a supremacia da lei (expressão que abrange a Constituição), de modo que a atividade administrativa encontra na lei seu fundamento e seu limite de validade Marçal Justen Filho
Muito se tem discutido sobre Projeto de Lei apresentado pelo Senador Delcídio, que propõe uma espécie de anistia ou remissão para brasileiros, Pessoas Físicas ou Morais, que tenham remetido ilegalmente recursos financeiros para o exterior, desde que façam a repatriação. Não se pretende aqui discutir o mérito econômico, se é que os há, do referido projeto, pois que impossível se analisar: 1) o impacto desse projeto no efetivo reingresso de recursos; 2) a bondade ou maldade de tais recursos na movimentação econômica, 3) a possibilidade de tais recursos efetivamente irem para o setor produtivo, tendo em vista as taxas reais de juros praticadas no Brasil.
Pretende-se – isso sim – uma análise jurídica do projeto. E por jurídica entenda-se a possibilidade de tal projeto estar constitucionalmente embasado. Somos, como todos sabem, positivistas. O critério de justiça ou injustiça, bondade ou maldade só pode, portanto, ser aferido se conforme a Constituição. Uma norma depende, para sua validade, da norma que lhe antecede e lhe é superior.
Não entraremos no mérito sobre o vício de iniciativa, pois que, apesar de entendermos que o Parlamento nunca é competente para iniciar matérias de índole tributária o Supremo, numa interpretação não sistemática da Constituição, definiu que a iniciativa é concorrente, sendo privativa do presidente apenas a matéria tributária específica dos territórios. Como bem dizia Aliomar Baleeiro, o Grande Ministro da Suprema Corte, a maior prerrogativa do STF é a de errar por último.
Ainda assim, o Projeto do Senador Delcídio guarda inconstitucionalidades, formais e materiais, que impedem sua aprovação.
Quanto às inconstitucionalidades formais:
Em primeira análise, um projeto como esse que modifica, ainda que transitoriamente, o Código Tributário Nacional (lei 5.172/66), só poderia ser editado como Lei Complementar. Explica-se: em que pese o Código Tributário Nacional, formalmente, ser uma lei ordinária, foi recepcionado como se lei complementar fosse pela Constituição de 1988. E a Constituição, ao determinar a edição de normas gerais de direito tributário, definiu que essa matéria é de competência de Leis Complementares.
Leis complementares diferem das leis ordinárias em razão do quorum. Enquanto as Leis ordinárias são aprovadas por maioria simples (metade mais um dos presentes, estando presentes metade mais um dos parlamentares) as Leis complementares exigem, para aprovação, maioria absoluta (metade mais um do número de parlamentares, independentemente do número de presentes). Em números: basta a uma lei ordinária que, estando presentes 257 deputados, 129 aprovem. Já a lei complementar exige, para aprovação na Camara, que concordem 257 deputados. (No Senado, Lei oridinária precisa de 21 votos de 41 e Lei complementar precisa dos 41).
Assim, o Código Tributário Nacional:
Art. 180. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando:
I - aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele;
Ora, para se permitir que as pessoas, físicas ou jurídicas, internalizem recursos sem que se considere cometidos crimes, necessário, obrigatoriamente, que tal anistia venha no corpo de uma lei complementar, ainda que suspenda temporariamente o que previsto no art. 180.
Logo, se se quer permitir que recursos de brasileiro ilegalmente existentes no exterior, adentrem o território, necessária a suspensão do art.180, impossível de ser sustado por lei ordinária como propõe o Senador Delcidio.
Quanto à necessidade de que se edite Lei Complementar para ab-rogar ou derrogar o Código Tributário Nacional há farta jurisprudência do Supremo.
Ressalte-se, por oportuno, que o Projeto de Lei do Senado é um projeto de Lei Ordinária. Reafirma-se que, nos termos do que ensinam a doutrina e jurisprudência, a inconstitucionalidade formal não admite, em qualquer hipótese, a sua saneabilidade. É lei morta desde antes de ser editada, impossível a sua convalidação.
Quanto às inconstitucionalidades materiais:
I – Quanto ao artigo 1º:
A Constituição explicita:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Ora, a livre iniciativa, ou concorrência leal, exige, por sua própria natureza, que os participantes do jogo tenham as mesmas condições de competição. Em determinados momentos da história do Brasil quem detinha recursos fora do País, ilegalmente, concorria, no plano interno, de forma desleal com aqueles que ou não tinham recursos ou os tinham de maneira legal fora do país. Basta aferir a carga tributária incidente sobre as operações legais de externalização de recursos para se perceber o quanto lucraram aqueles que enviaram recursos sem conhecimento da Fazenda.
Quanto ao artigo 37, cabeça:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
A anistia proposta pelo Senador Delcidio fere pelo menos dois prnicipios contidos no art. 37. Mas ficaremos e focaremos apenas em um: o princípio da moralidade. Ensina Gasparini:
O art.37, caput, da Constituição Federal menciona, entre outros, o princípio da moralidade, que não pode ser senão o da moralidade administrativa. De sorte que o principio da moralidade administrativa tem hoje status constitucional. Diz Hauriou, seu sitematizador, que o principio da moralidade administrativa extrai-se do conjunto de regras de conduta que regulam o agir da Administração Pública; tira-se da boa e útil disciplina interna da Administração Pública. O ato e a atividade da Administração Pública devem obedecer não só a lei, mas à própria moral, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme afirmam os romanos. Meirelles apoiado em Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do bom administrador, aquele que, usando de sua competência, determina-se não só pelos preceitos legais vigentes,como também pela moral comum, propugnando pelo que for melhor e mais útil para o interesse público. Por essa razão veda-se à Administração Pública qualquer comportamento que contrarie os princípios da lealdade e da boa-fé. A importância do princípio da moralidade administrativa já foi ressaltada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (RDA, 89:134), ao afirmar que a moralidade administrativa e o interesse coletivo, integram a legalidade do ato administrativo. De boa-fé, respeitando o princípio da confiança, contribuintes deixaram de enviar recursos para o exterior ou o fizeram nas balizas da lei. Logo, ao se admitir e remir os que ilegalmente agiram a Administração age contra a moralidade, indiretamente falando aos cidadãos que o mal feito e o ilegal serão tolerados e que os que agiram de boa-fé, respeitando os preceitos do Estado, foram, em verdade, idiotas.
O termo idiota é duro mas é real. Aqueles contribuintes que aceitaram perder dinheiro e proteção patrimonial mantendo seus recursos no Brasil, ou que os enviaram respeitando as regras (e, portanto, sendo tributados por isso) ao perceberem a anistia do Estado se sentirão traídos pelo Estado do qual aceitaram livremente se submeter. (não entraremos aqui no mérito dos contratualistas ou não, mas reafirmamos que o cidadão em determinado momento aceita as regras do Estado ou se rebela contra elas pelos meios que lhe dá o direito, mas nunca, de forma alguma, contra as regras previamente estabelecidas).
Reforçando o entendimento, explicita Diogo de Figueiredo Moreira Neto (já falando sobre legalidade e não moralidade):
A submissão do agir à lei, condição da convivência, de imemorial concepção no processo civilizatório e essência do princípio da legalidade, é de todos exigida, quando e apenas se determinada conduta ou inação estiverem nela prescritas, pois a regra geral para as pessoas em sociedade é a liberdade de ação.
Todavia, a submissão do agir do Estado à lei é sempre e onimodamente exigida, pois o poder público não pode atuar, sob hipótese alguma, contra ou praeter legem, obrigando-se à ação legalmente vinculada.(destacou-se).
Quanto ao artigo 150 da Constituição:
A Constituição reza:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
O Projeto de Lei cabe como uma luva no inciso II do artigo 150: ao se anistiar (na verdade se premiar com alíquota de apenas 5% de IRPJ ou IRPF) contribuintes, institui-se tratamento desigual entre contribuintes.
Suponhamos, apenas para efeito explicativo, que duas empresas atuem no mercado de brinquedos, em nível global: a Empresa A, cumprindo com as leis, externaliza ou internaliza recursos nos exatos termos da lei, mantendo uma saudável concorrência; a empresa B externaliza ou internaliza recursos de forma desleal e contrária á lei, recolhendo menos tributos. Lógico está que a Empresa B terá condições de oferecer o mesmo produto que a A por menor valor, pois que seus custos decorrentes da tributação serão menores por descumprimento da legislação tributária e de restrição da livre movimentação de capitais.
Se a Empresa B é anistiada, inclusive quanto aos crimes fiscais, ela é premiada pelo Estado e a Empresa A é tratada de forma desleal e desigual, sendo prejudicada no jogo de mercado, já que a Empresa B, ao longo dos anos, deslealmente concorreu, ofertando preços menores em razão de sua fraude ou simulação fiscal.
Ademais, tem-se a possibilidade de efeito colateral da medida. Explica-se. O artigo 151 reza que:
Art. 151. É vedado à União:
III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Ora, suponhamos que Tício tenha enviado ilegalmente para os EUA cem mil dólares no ano de 1995. Em 2007 Tício veio a falecer, deixando aqueles recursos, ainda ilegais, para seus herdeiros. Os herdeiros permaneceram na ilegalidade mantendo os recursos expatriados.
Com a lei aprovada, os herdeiros resolvem repatriar os recursos. O texto da lei é claro ao afirmar que incidem apenas tributos federais nessa internalização. Ocorre que, na verdade, por serem recursos advindos de herança, incidirão sobre eles o ITCD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação). Logo, a União estará incidindo na vedação do art. 151, III.
Por via incidente, a inconstitucionalidade do projeto é também aferida por sua incompatibilidade com os art. 163; 170; 172; 174; todos da Constituição Federal.
Por fim, relembre-se que a Constituição exige para regular o Sistema Financeiro Nacional Lei Complementar:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
Internalização e externalização de recursos é, em boa medida, parte do que se determina como procedimentais do Sistema Financeiro. Logo, toda e qualquer forma ilícita de expatriação de recursos teve que, em certa medida, transitar no Sistema Financeiro. Desse modo, volta-se ao que acima dito, o Projeto de lei em tela, para além dos vícios materiais, mantem em seu bojo o vicio da inconstitucionalidade formal, insanável e irrecuperável.
Reforce-se, por oportuno, que o citado projeto fere o princípio da “proteção à confiança” que é aquele princípio que protege o contribuinte das relações desiguais do Estado. Logo, é dever da lei, em atenção à confiança, garantir que aqueles que cumpriram com as norma sejam protegidos de toda tentativa de se beneficiar os que, de forma desidiosa e criminosa, burlaram as regras e afetaram o equilíbrio entre as partes.
O Estado não pode, e não deve, premiar os que não aceitam se submeter ao que dispõe a lei. O Estado não pode, e não deve, deixar em segundo plano aqueles que, ciosos de seus deveres cívicos, cumpriram com as normas ainda que elas lhes trouxessem prejuízos ou lhes diminuíssem as chances de competição no mercado.
É isso, superficialmente.