Republicanismo: dialogando com a Filosofia Política.
1. Introdução:
Esse trabalho pretende apontar o republicanismo como uma teoria plausível para se explicitar o que deva ser o estado. Conforme BOBBIO (2000), há pelo menos quatro diferentes formas de se entender o que seja “filosofia política”:
1. O modo mais tradicional e corrente de se compreender a filosofia política é entendê-la como descrição, projeção, teorização da ótima república ou, se quisermos, como a construção de um modelo ideal de Estado, fundado sobre alguns postulados éticos últimos, a respeito do qual não nos preocupamos se, quanto e como poderia ser efetivamente e totalmente implantado. (...)
2. O segundo modo de se compreender a filosofia política é considerá-la como a busca do fundamento último do poder, que permite responder à pergunta: “A quem devo obedecer? E por quê?” Trata-se aqui do problema bem conhecido da natureza e da função do dever de obediência política [obbligazione política]. Nesta acepção, filosofia política consiste na solução do problema da justificação do poder último, ou, em outras palavras, na determinação de um ou mais critérios de legitimidade do poder. (...)
3. Por filosofia política pode-se entender também a determinação do conceito geral de política, como atividade autônoma, modo ou forma do Espírito, como diria um idealista, que tem características específicas que a distinguem tanto da ética quanto da economia, ou do direito, ou da religião. (...)
4. A difusão do interesse pelos problemas epistemológicos, lógicos, de análise da linguagem, em geral, metodológicos, fez emergir um quarto modo de falar de filosofia política: a filosofia política como discurso crítico, voltado para os pressupostos, para as condições de verdade, para a pretensa objetividade, ou não-valoração [avalutatività] da ciência política. (...)
Assim, esse trabalho, ao buscar um diálogo efetivo entre a teoria republicana e a filosofia política, haverá de considerar o que seja filosofia nas primeiras duas acepções apontadas por BOBBIO: há um só tempo como tentativa de descrever e projetar a ótima república e – não menos importante – de se responder à questão do que seja o fundamento último do poder.
Para tanto se buscará compreender o Estado e se prescrever, em conformidade com aquela primeira concepção, uma forma de estado ótima, que possibilite a melhor convivência humana, bem como o atingimento dos fins a que deve se propor o estado.
2. Democracia X República: a questão do desejo
Há que se confrontar, da Grécia e Roma antigas aos dias de hoje, as diferenças e aproximações entre República e Democracia .
Na Grécia antiga, em determinado período, a democracia se assume como o regime da maioria dos cidadãos, capazes de participar da ágora e desejosos de possuir e usufruir vantagens – que até então – eram exclusivos da aristocracia, os “bons” ou “melhores”. Sendo formada e conformada por uma maioria de pobres o risco da democracia é que ela oprima e exproprie os outros. A respeito, elucida-se com o ensinamento de Barker (1978, p.301), explicitando o contexto da República de Platão:
(...) as três outras formas oligarquia, democracia e tirania – estão todas baseadas na supremacia do “apetite”, a qual causa um desequilíbrio, em diferente grau, dos outros componentes da alma. Se há três formas diferentes baseadas no elemento “apetite”, deve haver três formas, ou pelo menos três graus de “apetite” – o que Platão confirma. Devemos distinguir em primeiro lugar os apetites necessários (cuja satisfação é benéfica) dos desnecessários (que não trazem o bem, e às vezes levam ao mal). Na primeira categoria, incluímos os impulsos que nos levam à alimentação e à obtenção de tudo o que é necessário para a vida, de modo geral. Esses impulsos são aquisitivos, e podem ser chamados, em conjunto, de “apetite aquisitivo”. À segunda categoria pertence o apetite pelos alimentos requintados e por todos os luxos; são impulsos que levam ao consumo improfícuo, e podem ser denominados de “apetite de prodigalidade”. Tem-se aqui uma base para distinguir a oligarquia da democracia: a primeira se fundamenta no apetite aquisitivo; a segunda, não só nele, mas também no apetite pródigo. Poder-se-ia fundamentar a tirania exclusivamente no apetite de prodigalidade, mas Platão acha que a natureza peculiar da tirania convida a uma análise mais profunda da composição do apetite; e, no começo do Livro Nono da República, ensina a distinguir entre os apetites naturais ou legítimos e os artificiais ou ilegítimos. Estes últimos (...) são o elemento bestial da alma que se manifesta na tirania, e que a tirania gera. (...) Assim, a oligarquia busca a riqueza até perecer decomposta pela riqueza acumulada; a democracia busca a liberdade até que esta, em excesso, a arruína. (...) a democracia, por exemplo, deriva do desejo de se viver como se quer, livremente; a tirania se baseia nos desejos da carne e no “cupido dominandi” que caracterizam as feras.
Há, além do desejo, um outro sentido a aflorar, a ganância que põe de lado o direito, constituído pela lei. Assim, a tirania, a oligarquia e o que – hoje – se chama deformação da democracia , têm em comum a primazia do desejo, ou, na linguagem platônica, dos apetites, sobre a lei e o respeito a ela devidos. Bem conduzida, e esse é um risco inerente ao sistema baseado em maiorias, a massa popular se transforma em joguete nas mãos dos grandes oradores, perdendo de vista a tópica republicana, e tende a crer que a única saída é a expropriação dos ricos e que a política nada mais é que instrumento de espoliação do excedente produzido.
O desejo é então, conforme Ribeiro (2000, p.14), em um primeiro plano, “ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência”.
Nas democracias modernas, o desejo cedeu lugar aos interesses, entendidos os últimos em uma perspectiva econômica, contrapondo-se à virtude, aquela ética da convicção explicitada por Weber e que, desde Maquiavel, é desqualificada como inviável no plano político.
A temática republicana radica, diferentemente da democracia, na renúncia às vantagens privadas em prol da coisa pública. Assim, Montesquieu (1996,33) reafirma que a virtude é o princípio básico da República e que :
Quando cessa essa virtude, a ambição entra nos corações que estão prontos para recebê-la, e a avareza entra em todos. Os desejos mudam de objeto; o que se amava não se ama mais, era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo fugido da casa de seu senhor; o que era máxima é chamado rigor; o que era regra chamam-no incomodo; o que era cuidado chamam-no temor. É na frugalidade que se encontra a avareza, não no desejo de possuir. Antes o bem dos particulares formava o tesouro público, mas agora o tesouro público torna-se patrimônio dos particulares.
A questão republicana, que se coloca em destaque, desde o período romano é que aqueles que fazem as leis são os mesmos que devem obedecê-la. Assim Cícero, o grande defensor da República Romana (2004,p. 56):
Quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão; uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com sua situação pessoal, outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu [...] Entregar-se inteiramente à Pátria; não deve ter por finalidade o poder e a riqueza, seus cuidados devem ser tanto pela coisa particular como pela geral; nunca chegar a expor quem quer que seja ao ódio público por falsas acusações, e ser tão seguro ao que prescrevem a honradez e a justiça que antes de se afastar deles estará sempre disposto a afrontar as barreiras arriscando a própria vida.
A República se torna um regime de auto-contenção dos desejos, uma virtude de abnegação, em que aqueles que fazem as leis, não as fazem somente para que outros as cumpram, mas também para si mesmos. Deste modo, num regime republicano não vige o império da maioria, mas o império da lei que – a todos - cumpre reverenciar. Numa linguagem psicanalítica, a democracia seria o id, os instintos e desejos mais selvagens e sem controle; o povo seria o ego, sempre duvidoso de qual caminho seguir, necessitando orientação e quase sempre pronto a afogar-se na satisfação do id; e a República seria o superego, o controle moral e virtuoso que é capaz de botar freios nos instintos, tornando os cidadãos mais capazes e dignos de sobrepor os interesses públicos aos particulares .
2.4 Kant e Rawls: fundamentos de uma República como Liberdade
Para Kant (2004), o Estado de direito é definido como a reunião de homens sob o império das leis, princípios emanados da Razão. Kant define como essenciais os princípios de que o homem é livre enquanto homem; que todos são iguais enquanto súditos da lei e que, não menos importante, cada individuo é autônomo enquanto cidadão. Faltando qualquer desses elementos, não se pode dizer que o Estado seja fruto da Razão humana .
Assim BÖCKENFÖRDE (2000, p.127) traduz a concepção pretendida:
Na discussão jurídico-público da atualidade, sem dúvida, o conceito de República é utilizado e definido em um sentido material. A chave desta definição – defendida por Cícero e, mais tarde, acentuada sobretudo por Kant – é a idéia de que o Estado é uma comunidade pública (res publica): nela o domínio não se deve exercer segundo os interesses individuais ou de um grupo, mas em razão do que é melhor para a comunidade.; ademais, a constituição do estado é compreendida como uma ordenação dos cargos públicos através da lei – sobre uma base de igualdade e liberdade dos cidadãos – com tarefas e competências especificamente circunscritas, onde não se exerce um domínio individual e sim se buscam os interesses e objetivos ordenados e a liberdade na vida em comum; finalmente, implica uma forma correspondente de entender o Estado como res publica por parte dos cidadãos (...) se refere, pois, à razão mesma de ser do domínio estatal, ao princípio que conforma seu conteúdo e à sua configuração concreta de acordo com este princípio. Neste conceito de República estão incluídos ou relativizados a forma de estado – elementos do estado de Direito, mas, para além disso, tem a função de estabelecer uma orientação normativa para a finalidade da ação do Estado. (Destaque acrescentado)
Rawls (2000) trabalha com a idéia de dois princípios de justiça: o princípio da prioridade da liberdade, que prescreve que os direitos civis e políticos sejam distribuídos igualmente entre os cidadãos e o princípio da equidade, que só permite desigualdades sociais e econômicas na medida em que estejam adstritas a possibilidades abertas a todos e que sejam em benefício dos menos aquinhoados da sociedade.
A visão rawlsiana se aproxima da idéia de um consentimento, um contrato hipotético, fundado na eleição racional que tem por base o interesse. Rawls (2000) sustenta que os primeiros homens a fazer o contrato, em sua posição originária, são egoístas. Por isso trabalha com a idéia de véu da ignorância, que nada mais é do que o impedimento que têm de conhecer quem são e quais são seus interesses, isto é, em que pontos da pirâmide social estarão. O pressuposto do egoísmo e da ignorância podem assim ser equivalentes a imparcialidade e conhecimento.
A teoria de Rawls, próxima à de Kant, sustenta que um juízo moral é verdadeiro quando deriva de um princípio que seria aceito na posição original, vale dizer, que deriva de um princípio geral, universal, público, final, que seria aceito unicamente em condições de imparcialidade, racionalidade e conhecimento dos direitos relevantes. Para Rawls (2000), o construtivismo político é uma visão relativa à estrutura e conteúdo de uma concepção política. Depois de se obter o equilíbrio reflexivo, os princípios políticos de justiça se apresentam como resultado do procedimento de construção (conteúdo=estrutura). Nesse procedimento – conforme à posição original – os agentes racionais, representando os cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, realizam a escolha dos princípios públicos de justiça reguladores da estrutura básica social. Esse procedimento, que demonstraria a síntese dos requisitos relevantes da razão prática, revelando a gênese dos princípios de justiça, está na principiologia da razão prática conjugada com as concepções de sociedade e pessoa, obtidas através do equilíbrio reflexivo, como procedimento. Procedimento este adequado às restrições formais: generalidade, universalidade, publicidade, finalidade. Implica reafirmar; os procedimentos pelos quais os primeiros princípios são eleitos devem estar em conformidade com a razão prática, num caso de justiça processual pura.. E continua afirmando que a importância de uma concepção política construtivista está na relação com o pluralismo razoável e a necessidade democrática de assegurar um consenso sobreposto quanto aos valores políticos fundamentais; todos em conformidade com a razão prática.
Kant e Rawls se aproximam do ideal de liberdade do homem e procuram, com seu pensamento, fornecer bases e critérios para que o Estado seja, sempre mais, um potencializador da liberdade dos cidadãos .
3. O Estado: uma tentativa de interpretação do poder
Conforme BOBBIO:
O conceito de política, entendida como forma de atividade ou práxis humana, está estreitamente ligado ao conceito de poder. O poder foi definido tradicionalmente como “consistente nos meios para se obter alguma vantagem” [Hobbes] ou, de modo análogo, como “o conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados” [Russell]. Sendo um desses meios o domínio sobre outros homens (alem do domínio sobre a natureza), o poder é definido ora como uma relação entre dois sujeitos, na qual um impõe ao outro a própria vontade, determinando-o seu, malgrado o comportamento: mas como o domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas meio para se obter “alguma vantagem”, ou, mais exatamente, “os efeitos desejados”, de modo não distinto do domínio sobre a natureza, a definição de poder como tipo de relação entre os sujeitos deve ser integrada à definição do poder como a posse dos meios (dos quais os dois principais são o domínio sobre os outros homens e o domínio sobre a natureza) que permitem obter, exatamente, “alguma vantagem”, ou os “efeitos desejados”. O poder político pertence à categoria do poder de um homem sobre outro homem (não do poder do homem sobre a natureza). Essa relação de poder é expressa de mil maneiras, nas quais se reconhecem expressões típicas da linguagem política: como relação entre governantes e governados, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos, entre comando e obediência .
Segundo TILLY, analisando os estados europeus sob o prisma da coerção e do capital:
Com efeito, parecem tão naturais a emergência dos estados nacionais, a expansão dos exércitos nacionais e a longa hegemonia da Europa que os estudiosos raramente indagam porque as suas alternativas plausíveis não prevaleceram no continente europeu: tanto quanto os sistemas de impérios regionais com frouxas articulações que prosperaram na Ásia, na África e na América pouco depois de 900 a.C. uma parte da resposta reside, sem dúvida, na dialética das cidades e estados que se desenvolveram em poucas centenas de anos após 990. Isso porque a existência de uma rede urbana densa e desigual, simultânea a uma divisão em inúmeros estados bem definidos e mais ou menos independentes, acabou por separar a Europa do resto do mundo. Por trás das mudanças geográficas das cidades e estados atuava a dinâmica do capital (cujo campo preferido eram as cidades) e da coerção (que se cristalizava sobretudo nos estados). Os estudos sobre as interações das cidades e dos estados logo se transformaram em pesquisas sobre o capital e a coerção.50
(...)
A historia diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os aplicadores da coerção, que desempenharam um papel importante na criação dos estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores de capital, cujas atividades geraram as cidades.63
(...)
E o que dizer da coerção? A coerção compreende toda aplicação combinada – ameaçada ou real – de uma ação que comumente causa perda ou dano às pessoas ou às posses de indivíduos ou grupos, os quais estão conscientes tanto da ação quanto do possível dano. Onde o capital define um domínio de exploração, a coerção define um campo de dominação.67
(...)
Referências Bibliográficas:
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________ Teoria Pura do Direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. 2ª Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
_________ Teoria do Direito (Primeiras Lições). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
REGLA, Josep Aguiló. La derrogación de normas em La Obra de Hans Kelsen. DOXA, 10/1991, pag 223-258.
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