http://www.youtube.com/user/stf?blend=2&ob=4#p/u/46/a3t7cnRAsVI
Veja aí em cima que o Supremo, dias atrás, decidiu-se por derrubar uma liminar do Ministro Marco Aurélio, que impedia o acesso da Receita aos dados e movimentação bancária do Contribuinte sem autorização judicial. Argumentos pouco robustos os dos que acreditavam na constitucionalidade de tal artigo de lei, esquecendo-se de uma interpretação sistemática da Constituição.
O Ministro Dias Toffoli (está fazendo o que lá, eu não sei) chegou ao absurdo de afirmar que o art 145, §1º da Constituição permitia tal afronta porque, segundo o texto, a receita poderia ter acesso a bens, rendimentos e atividades economicas do contribuinte. Só que o Ministro esqueceu que no próprio parágrafo está bem descrito: observados os direitos e garantias individuais e a lei.
Nessa semana o Ministro Gilmar Mendes, na votação do recurso extraordinário (mesmas partes da cautelar acima), ponderou que, após o voto do Ministro Celso de Melo, teve sérias dúvidas e que, no caso, votava tambem com o Relator pela inconstitucionalidade.
A surpresa, para mim, quanto ao voto do Gilmar não foi o voto de hoje, mas o voto da semana passada. O Ministro Gilmar mendes, sem sombra de qualquer dúvida o melhor Ministro entre as últimas composições (não só por causa de sua formação, mas também - e principalmente - por sua defesa intransigente do Estado de Direito), não combinava com aquele voto em que se instaurava o Estado Policial no Brasil.
Continua - portanto - (ainda que com frágil maioria) o STF como garantista e garantidor do Estado Republicano e de Direito, que deve decidir mesmo que contramajoritariamente. Mas me preocupa porque vejo nos Ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa, seguido do Dias Tofoli homens que votam contra o individuo, que desprezam a ação individual e que têem uma crença no Estado até mesmo infantilizada.
A Nota do Dia fica pela Sustentação Oral do Advogado da União. Ele afirmou - com todas as letras - que temos garantias demais contra o estado, que o estado não é inimigo e por aí vai. Sua sustentação me levou a pensar que se os advogados gerais pensam como o colega, daqui a pouco os veremos defendendo quebgras de sigilo, violação de correspondencia, invasoes domiciliares porque a constituição é garantista mas o Estado quer cuidar de nós.
Para esse Advogado bobo, que ainda por cima citou a música do tropa de elite ( o filme) como modelo do que a população clama pelo estado, que lei.
Sugiro a todos que pensam ou não como ele que tomem os seguintes antídotos:
1- Teoria da Liberdade - Philip Pettit
2. QQ livro de Isaiah Berlin
3. Benjamin Constant (não o brasileiro, mas o francês)
e que caso queiram saber como terminam as histórias dos povos que pensam como eles, que leiam ás fábulas 1984 e Revolução dos Bichos.
Enfim, ontem o STF provou que pode corrigir bobagens do Pleno, tomando decisões que garantam a privacidade, a honra e o sigilo das pessoas físicas ou morais. Espero sinceramente que o 11º Ministro não seja da matriz de "pensamento" de Ayres, Barbosa e Tofoli.
(não cito Gracie, pq tenho dúvidas faz 10 anos se ela tem tal capacidade)
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
sábado, 4 de dezembro de 2010
Quem sou eu?
QUEM SOU EU?
Eu sou eu e mais que eu, o que me cerca. Por isso eu sou a soma de tantos outros eus que me fizeram ser o que sou. Por isso, não caibo em uma definição, não sou passível de conceituação. Por isso, quando me apresento, comigo carrego um elenco de outros que me constituem. Eu sou eu e Machado, vivendo da vida a dúvida de Casmurro, e bandeira a bordejar estrelas de uma vida inteira. Eu sou o tempo de Agostinho, a história de Hegel, o ser de Sartre. eu sou o livro que eu li me leu e o que eu lerei da vida em mim. Eu sou eu e Kierkegaard, e Shopenhauer e Aristóteles. Tenho em mim parcelas de Tomás de Aquino, de Alexandre e Napoleão. Carrego Paulo e João (apocalíptico) em meu essere. e sou, mais que tudo, Afonso de Ligório e sua música, e seus escritos e seus projetos e seus sonhos. e pela música me conservo Mozart, Beethoven, Wagner, Bach e na evolução da escala me mantenho Renato Teixeira, Almir Sater, Sérgio reis. Ora pois isso confirma que não sou egoísta e me recorto recortando os outros e em mim colando as partes que me interessam. Destarte eu sou colagem e não me pretendo original. A minha essência é ser passível de influência, é ser capaz de assimilar o outro e por isso sou Luhman, e Kelsen, e Baleeiro... Sou também os que me cercam e mesmo os que de mim se afastam. Eu sou eu, caleidoscópio de milhares de faces, multifragmentado, labirinto de idéias e de sonhos. Em meu ser se digladiam o Apóstolo e o Apóstata. Há João dizendo do Verbo e Nietzsche cantando réquiens a Deus; Padre Júlio Maria pregando o deus Desprezado e o ateu desprezando a Deus. Há de tudo em mim, comigo convivendo e por mim vivendo. Por isso, fragmento de história que se faz eu não existo sem os outros; eu me desfaço me construindo e só creio que estarei em perfeita definição após deixar de ser.
Minto... Até depois de morto eu não serei eu mas soma de multi-eus. Pois que ao descer ao túmulo meus ossos serão unidos aos ossos dos que me antecederam, o sangue que nos une na última morada, a esperança que vivemos enfim confrontada. eu serei eu e meus avós e meus tios e meus bisavós e os antes deles. Lá ainda os fragmentos jamais serão descobertos porque unidos pelos fios da eternidade. Ainda lá serei sempre o gosto da saudade, o alimento do meu eu. Não a saudade do que passou, que isso não é saudade, mas a saudade do futuro e da eternidade. eu só sou eu se me abasteço das riquezas dos outros eus, eu só sou eu no olhar do outro e, antropofagicamente, deglutir o outro fazendo-me eu com eles. e por isso insisto em ser metamorfose constante; e por isso me permito não caber em definição alguma; e por isso serei eternamente incognoscível porque mutante, porque em eterno movimento. E sendo assim, serei eu e os que vieram antes de mim, eterno plágio. e sendo desse jeito serei eu e os que me cercam, constante paródia. E sendo eu serei os outros que me sucedem, imutável retorno. Eu sou eu e as circunstâncias que me rodeiam, e os olhos que me olham e os sonhos que sonho e as histórias que vivo. Eu sou soma, não divisão, multiplicação de feições, não subtração. E sou história de minha história e lenda de minhas ficções. Eu sou eu, eterna, infinita, majestosa contradição.
Minto... Até depois de morto eu não serei eu mas soma de multi-eus. Pois que ao descer ao túmulo meus ossos serão unidos aos ossos dos que me antecederam, o sangue que nos une na última morada, a esperança que vivemos enfim confrontada. eu serei eu e meus avós e meus tios e meus bisavós e os antes deles. Lá ainda os fragmentos jamais serão descobertos porque unidos pelos fios da eternidade. Ainda lá serei sempre o gosto da saudade, o alimento do meu eu. Não a saudade do que passou, que isso não é saudade, mas a saudade do futuro e da eternidade. eu só sou eu se me abasteço das riquezas dos outros eus, eu só sou eu no olhar do outro e, antropofagicamente, deglutir o outro fazendo-me eu com eles. e por isso insisto em ser metamorfose constante; e por isso me permito não caber em definição alguma; e por isso serei eternamente incognoscível porque mutante, porque em eterno movimento. E sendo assim, serei eu e os que vieram antes de mim, eterno plágio. e sendo desse jeito serei eu e os que me cercam, constante paródia. E sendo eu serei os outros que me sucedem, imutável retorno. Eu sou eu e as circunstâncias que me rodeiam, e os olhos que me olham e os sonhos que sonho e as histórias que vivo. Eu sou soma, não divisão, multiplicação de feições, não subtração. E sou história de minha história e lenda de minhas ficções. Eu sou eu, eterna, infinita, majestosa contradição.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Republicanismo: Um olhar sobre o Pensamento de Cícero
Caríssimos,
Um bom texto em castelhano que explica as origens do pensamento republicano a partir do pensamento de Cícero.
Caríssimos,
Um bom texto em castelhano que explica as origens do pensamento republicano a partir do pensamento de Cícero.
Explicação
Os dois textos abaixo se trTAM DE ARTIGOS ESCRITOS PARA OBTENÇAO PARCIAL DE NOTA EM DISCIPLINAS DO MESTRADO EM dIREITO. São experimentações vaseadas um no Jusfilósofo Hans Kelsen e outro fundado no pensamento republicano. Espero ter contribuido.
Republicanismo: dialogando com a Filosofia Política
Republicanismo: dialogando com a Filosofia Política.
1. Introdução:
Esse trabalho pretende apontar o republicanismo como uma teoria plausível para se explicitar o que deva ser o estado. Conforme BOBBIO (2000), há pelo menos quatro diferentes formas de se entender o que seja “filosofia política”:
1. O modo mais tradicional e corrente de se compreender a filosofia política é entendê-la como descrição, projeção, teorização da ótima república ou, se quisermos, como a construção de um modelo ideal de Estado, fundado sobre alguns postulados éticos últimos, a respeito do qual não nos preocupamos se, quanto e como poderia ser efetivamente e totalmente implantado. (...)
2. O segundo modo de se compreender a filosofia política é considerá-la como a busca do fundamento último do poder, que permite responder à pergunta: “A quem devo obedecer? E por quê?” Trata-se aqui do problema bem conhecido da natureza e da função do dever de obediência política [obbligazione política]. Nesta acepção, filosofia política consiste na solução do problema da justificação do poder último, ou, em outras palavras, na determinação de um ou mais critérios de legitimidade do poder. (...)
3. Por filosofia política pode-se entender também a determinação do conceito geral de política, como atividade autônoma, modo ou forma do Espírito, como diria um idealista, que tem características específicas que a distinguem tanto da ética quanto da economia, ou do direito, ou da religião. (...)
4. A difusão do interesse pelos problemas epistemológicos, lógicos, de análise da linguagem, em geral, metodológicos, fez emergir um quarto modo de falar de filosofia política: a filosofia política como discurso crítico, voltado para os pressupostos, para as condições de verdade, para a pretensa objetividade, ou não-valoração [avalutatività] da ciência política. (...)
Assim, esse trabalho, ao buscar um diálogo efetivo entre a teoria republicana e a filosofia política, haverá de considerar o que seja filosofia nas primeiras duas acepções apontadas por BOBBIO: há um só tempo como tentativa de descrever e projetar a ótima república e – não menos importante – de se responder à questão do que seja o fundamento último do poder.
Para tanto se buscará compreender o Estado e se prescrever, em conformidade com aquela primeira concepção, uma forma de estado ótima, que possibilite a melhor convivência humana, bem como o atingimento dos fins a que deve se propor o estado.
2. Democracia X República: a questão do desejo
Há que se confrontar, da Grécia e Roma antigas aos dias de hoje, as diferenças e aproximações entre República e Democracia .
Na Grécia antiga, em determinado período, a democracia se assume como o regime da maioria dos cidadãos, capazes de participar da ágora e desejosos de possuir e usufruir vantagens – que até então – eram exclusivos da aristocracia, os “bons” ou “melhores”. Sendo formada e conformada por uma maioria de pobres o risco da democracia é que ela oprima e exproprie os outros. A respeito, elucida-se com o ensinamento de Barker (1978, p.301), explicitando o contexto da República de Platão:
(...) as três outras formas oligarquia, democracia e tirania – estão todas baseadas na supremacia do “apetite”, a qual causa um desequilíbrio, em diferente grau, dos outros componentes da alma. Se há três formas diferentes baseadas no elemento “apetite”, deve haver três formas, ou pelo menos três graus de “apetite” – o que Platão confirma. Devemos distinguir em primeiro lugar os apetites necessários (cuja satisfação é benéfica) dos desnecessários (que não trazem o bem, e às vezes levam ao mal). Na primeira categoria, incluímos os impulsos que nos levam à alimentação e à obtenção de tudo o que é necessário para a vida, de modo geral. Esses impulsos são aquisitivos, e podem ser chamados, em conjunto, de “apetite aquisitivo”. À segunda categoria pertence o apetite pelos alimentos requintados e por todos os luxos; são impulsos que levam ao consumo improfícuo, e podem ser denominados de “apetite de prodigalidade”. Tem-se aqui uma base para distinguir a oligarquia da democracia: a primeira se fundamenta no apetite aquisitivo; a segunda, não só nele, mas também no apetite pródigo. Poder-se-ia fundamentar a tirania exclusivamente no apetite de prodigalidade, mas Platão acha que a natureza peculiar da tirania convida a uma análise mais profunda da composição do apetite; e, no começo do Livro Nono da República, ensina a distinguir entre os apetites naturais ou legítimos e os artificiais ou ilegítimos. Estes últimos (...) são o elemento bestial da alma que se manifesta na tirania, e que a tirania gera. (...) Assim, a oligarquia busca a riqueza até perecer decomposta pela riqueza acumulada; a democracia busca a liberdade até que esta, em excesso, a arruína. (...) a democracia, por exemplo, deriva do desejo de se viver como se quer, livremente; a tirania se baseia nos desejos da carne e no “cupido dominandi” que caracterizam as feras.
Há, além do desejo, um outro sentido a aflorar, a ganância que põe de lado o direito, constituído pela lei. Assim, a tirania, a oligarquia e o que – hoje – se chama deformação da democracia , têm em comum a primazia do desejo, ou, na linguagem platônica, dos apetites, sobre a lei e o respeito a ela devidos. Bem conduzida, e esse é um risco inerente ao sistema baseado em maiorias, a massa popular se transforma em joguete nas mãos dos grandes oradores, perdendo de vista a tópica republicana, e tende a crer que a única saída é a expropriação dos ricos e que a política nada mais é que instrumento de espoliação do excedente produzido.
O desejo é então, conforme Ribeiro (2000, p.14), em um primeiro plano, “ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência”.
Nas democracias modernas, o desejo cedeu lugar aos interesses, entendidos os últimos em uma perspectiva econômica, contrapondo-se à virtude, aquela ética da convicção explicitada por Weber e que, desde Maquiavel, é desqualificada como inviável no plano político.
A temática republicana radica, diferentemente da democracia, na renúncia às vantagens privadas em prol da coisa pública. Assim, Montesquieu (1996,33) reafirma que a virtude é o princípio básico da República e que :
Quando cessa essa virtude, a ambição entra nos corações que estão prontos para recebê-la, e a avareza entra em todos. Os desejos mudam de objeto; o que se amava não se ama mais, era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo fugido da casa de seu senhor; o que era máxima é chamado rigor; o que era regra chamam-no incomodo; o que era cuidado chamam-no temor. É na frugalidade que se encontra a avareza, não no desejo de possuir. Antes o bem dos particulares formava o tesouro público, mas agora o tesouro público torna-se patrimônio dos particulares.
A questão republicana, que se coloca em destaque, desde o período romano é que aqueles que fazem as leis são os mesmos que devem obedecê-la. Assim Cícero, o grande defensor da República Romana (2004,p. 56):
Quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão; uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com sua situação pessoal, outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu [...] Entregar-se inteiramente à Pátria; não deve ter por finalidade o poder e a riqueza, seus cuidados devem ser tanto pela coisa particular como pela geral; nunca chegar a expor quem quer que seja ao ódio público por falsas acusações, e ser tão seguro ao que prescrevem a honradez e a justiça que antes de se afastar deles estará sempre disposto a afrontar as barreiras arriscando a própria vida.
A República se torna um regime de auto-contenção dos desejos, uma virtude de abnegação, em que aqueles que fazem as leis, não as fazem somente para que outros as cumpram, mas também para si mesmos. Deste modo, num regime republicano não vige o império da maioria, mas o império da lei que – a todos - cumpre reverenciar. Numa linguagem psicanalítica, a democracia seria o id, os instintos e desejos mais selvagens e sem controle; o povo seria o ego, sempre duvidoso de qual caminho seguir, necessitando orientação e quase sempre pronto a afogar-se na satisfação do id; e a República seria o superego, o controle moral e virtuoso que é capaz de botar freios nos instintos, tornando os cidadãos mais capazes e dignos de sobrepor os interesses públicos aos particulares .
2.4 Kant e Rawls: fundamentos de uma República como Liberdade
Para Kant (2004), o Estado de direito é definido como a reunião de homens sob o império das leis, princípios emanados da Razão. Kant define como essenciais os princípios de que o homem é livre enquanto homem; que todos são iguais enquanto súditos da lei e que, não menos importante, cada individuo é autônomo enquanto cidadão. Faltando qualquer desses elementos, não se pode dizer que o Estado seja fruto da Razão humana .
Assim BÖCKENFÖRDE (2000, p.127) traduz a concepção pretendida:
Na discussão jurídico-público da atualidade, sem dúvida, o conceito de República é utilizado e definido em um sentido material. A chave desta definição – defendida por Cícero e, mais tarde, acentuada sobretudo por Kant – é a idéia de que o Estado é uma comunidade pública (res publica): nela o domínio não se deve exercer segundo os interesses individuais ou de um grupo, mas em razão do que é melhor para a comunidade.; ademais, a constituição do estado é compreendida como uma ordenação dos cargos públicos através da lei – sobre uma base de igualdade e liberdade dos cidadãos – com tarefas e competências especificamente circunscritas, onde não se exerce um domínio individual e sim se buscam os interesses e objetivos ordenados e a liberdade na vida em comum; finalmente, implica uma forma correspondente de entender o Estado como res publica por parte dos cidadãos (...) se refere, pois, à razão mesma de ser do domínio estatal, ao princípio que conforma seu conteúdo e à sua configuração concreta de acordo com este princípio. Neste conceito de República estão incluídos ou relativizados a forma de estado – elementos do estado de Direito, mas, para além disso, tem a função de estabelecer uma orientação normativa para a finalidade da ação do Estado. (Destaque acrescentado)
Rawls (2000) trabalha com a idéia de dois princípios de justiça: o princípio da prioridade da liberdade, que prescreve que os direitos civis e políticos sejam distribuídos igualmente entre os cidadãos e o princípio da equidade, que só permite desigualdades sociais e econômicas na medida em que estejam adstritas a possibilidades abertas a todos e que sejam em benefício dos menos aquinhoados da sociedade.
A visão rawlsiana se aproxima da idéia de um consentimento, um contrato hipotético, fundado na eleição racional que tem por base o interesse. Rawls (2000) sustenta que os primeiros homens a fazer o contrato, em sua posição originária, são egoístas. Por isso trabalha com a idéia de véu da ignorância, que nada mais é do que o impedimento que têm de conhecer quem são e quais são seus interesses, isto é, em que pontos da pirâmide social estarão. O pressuposto do egoísmo e da ignorância podem assim ser equivalentes a imparcialidade e conhecimento.
A teoria de Rawls, próxima à de Kant, sustenta que um juízo moral é verdadeiro quando deriva de um princípio que seria aceito na posição original, vale dizer, que deriva de um princípio geral, universal, público, final, que seria aceito unicamente em condições de imparcialidade, racionalidade e conhecimento dos direitos relevantes. Para Rawls (2000), o construtivismo político é uma visão relativa à estrutura e conteúdo de uma concepção política. Depois de se obter o equilíbrio reflexivo, os princípios políticos de justiça se apresentam como resultado do procedimento de construção (conteúdo=estrutura). Nesse procedimento – conforme à posição original – os agentes racionais, representando os cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, realizam a escolha dos princípios públicos de justiça reguladores da estrutura básica social. Esse procedimento, que demonstraria a síntese dos requisitos relevantes da razão prática, revelando a gênese dos princípios de justiça, está na principiologia da razão prática conjugada com as concepções de sociedade e pessoa, obtidas através do equilíbrio reflexivo, como procedimento. Procedimento este adequado às restrições formais: generalidade, universalidade, publicidade, finalidade. Implica reafirmar; os procedimentos pelos quais os primeiros princípios são eleitos devem estar em conformidade com a razão prática, num caso de justiça processual pura.. E continua afirmando que a importância de uma concepção política construtivista está na relação com o pluralismo razoável e a necessidade democrática de assegurar um consenso sobreposto quanto aos valores políticos fundamentais; todos em conformidade com a razão prática.
Kant e Rawls se aproximam do ideal de liberdade do homem e procuram, com seu pensamento, fornecer bases e critérios para que o Estado seja, sempre mais, um potencializador da liberdade dos cidadãos .
3. O Estado: uma tentativa de interpretação do poder
Conforme BOBBIO:
O conceito de política, entendida como forma de atividade ou práxis humana, está estreitamente ligado ao conceito de poder. O poder foi definido tradicionalmente como “consistente nos meios para se obter alguma vantagem” [Hobbes] ou, de modo análogo, como “o conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados” [Russell]. Sendo um desses meios o domínio sobre outros homens (alem do domínio sobre a natureza), o poder é definido ora como uma relação entre dois sujeitos, na qual um impõe ao outro a própria vontade, determinando-o seu, malgrado o comportamento: mas como o domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas meio para se obter “alguma vantagem”, ou, mais exatamente, “os efeitos desejados”, de modo não distinto do domínio sobre a natureza, a definição de poder como tipo de relação entre os sujeitos deve ser integrada à definição do poder como a posse dos meios (dos quais os dois principais são o domínio sobre os outros homens e o domínio sobre a natureza) que permitem obter, exatamente, “alguma vantagem”, ou os “efeitos desejados”. O poder político pertence à categoria do poder de um homem sobre outro homem (não do poder do homem sobre a natureza). Essa relação de poder é expressa de mil maneiras, nas quais se reconhecem expressões típicas da linguagem política: como relação entre governantes e governados, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos, entre comando e obediência .
Segundo TILLY, analisando os estados europeus sob o prisma da coerção e do capital:
Com efeito, parecem tão naturais a emergência dos estados nacionais, a expansão dos exércitos nacionais e a longa hegemonia da Europa que os estudiosos raramente indagam porque as suas alternativas plausíveis não prevaleceram no continente europeu: tanto quanto os sistemas de impérios regionais com frouxas articulações que prosperaram na Ásia, na África e na América pouco depois de 900 a.C. uma parte da resposta reside, sem dúvida, na dialética das cidades e estados que se desenvolveram em poucas centenas de anos após 990. Isso porque a existência de uma rede urbana densa e desigual, simultânea a uma divisão em inúmeros estados bem definidos e mais ou menos independentes, acabou por separar a Europa do resto do mundo. Por trás das mudanças geográficas das cidades e estados atuava a dinâmica do capital (cujo campo preferido eram as cidades) e da coerção (que se cristalizava sobretudo nos estados). Os estudos sobre as interações das cidades e dos estados logo se transformaram em pesquisas sobre o capital e a coerção.50
(...)
A historia diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os aplicadores da coerção, que desempenharam um papel importante na criação dos estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores de capital, cujas atividades geraram as cidades.63
(...)
E o que dizer da coerção? A coerção compreende toda aplicação combinada – ameaçada ou real – de uma ação que comumente causa perda ou dano às pessoas ou às posses de indivíduos ou grupos, os quais estão conscientes tanto da ação quanto do possível dano. Onde o capital define um domínio de exploração, a coerção define um campo de dominação.67
(...)
Referências Bibliográficas:
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________ Teoria Pura do Direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. 2ª Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
_________ Teoria do Direito (Primeiras Lições). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
REGLA, Josep Aguiló. La derrogación de normas em La Obra de Hans Kelsen. DOXA, 10/1991, pag 223-258.
1. Introdução:
Esse trabalho pretende apontar o republicanismo como uma teoria plausível para se explicitar o que deva ser o estado. Conforme BOBBIO (2000), há pelo menos quatro diferentes formas de se entender o que seja “filosofia política”:
1. O modo mais tradicional e corrente de se compreender a filosofia política é entendê-la como descrição, projeção, teorização da ótima república ou, se quisermos, como a construção de um modelo ideal de Estado, fundado sobre alguns postulados éticos últimos, a respeito do qual não nos preocupamos se, quanto e como poderia ser efetivamente e totalmente implantado. (...)
2. O segundo modo de se compreender a filosofia política é considerá-la como a busca do fundamento último do poder, que permite responder à pergunta: “A quem devo obedecer? E por quê?” Trata-se aqui do problema bem conhecido da natureza e da função do dever de obediência política [obbligazione política]. Nesta acepção, filosofia política consiste na solução do problema da justificação do poder último, ou, em outras palavras, na determinação de um ou mais critérios de legitimidade do poder. (...)
3. Por filosofia política pode-se entender também a determinação do conceito geral de política, como atividade autônoma, modo ou forma do Espírito, como diria um idealista, que tem características específicas que a distinguem tanto da ética quanto da economia, ou do direito, ou da religião. (...)
4. A difusão do interesse pelos problemas epistemológicos, lógicos, de análise da linguagem, em geral, metodológicos, fez emergir um quarto modo de falar de filosofia política: a filosofia política como discurso crítico, voltado para os pressupostos, para as condições de verdade, para a pretensa objetividade, ou não-valoração [avalutatività] da ciência política. (...)
Assim, esse trabalho, ao buscar um diálogo efetivo entre a teoria republicana e a filosofia política, haverá de considerar o que seja filosofia nas primeiras duas acepções apontadas por BOBBIO: há um só tempo como tentativa de descrever e projetar a ótima república e – não menos importante – de se responder à questão do que seja o fundamento último do poder.
Para tanto se buscará compreender o Estado e se prescrever, em conformidade com aquela primeira concepção, uma forma de estado ótima, que possibilite a melhor convivência humana, bem como o atingimento dos fins a que deve se propor o estado.
2. Democracia X República: a questão do desejo
Há que se confrontar, da Grécia e Roma antigas aos dias de hoje, as diferenças e aproximações entre República e Democracia .
Na Grécia antiga, em determinado período, a democracia se assume como o regime da maioria dos cidadãos, capazes de participar da ágora e desejosos de possuir e usufruir vantagens – que até então – eram exclusivos da aristocracia, os “bons” ou “melhores”. Sendo formada e conformada por uma maioria de pobres o risco da democracia é que ela oprima e exproprie os outros. A respeito, elucida-se com o ensinamento de Barker (1978, p.301), explicitando o contexto da República de Platão:
(...) as três outras formas oligarquia, democracia e tirania – estão todas baseadas na supremacia do “apetite”, a qual causa um desequilíbrio, em diferente grau, dos outros componentes da alma. Se há três formas diferentes baseadas no elemento “apetite”, deve haver três formas, ou pelo menos três graus de “apetite” – o que Platão confirma. Devemos distinguir em primeiro lugar os apetites necessários (cuja satisfação é benéfica) dos desnecessários (que não trazem o bem, e às vezes levam ao mal). Na primeira categoria, incluímos os impulsos que nos levam à alimentação e à obtenção de tudo o que é necessário para a vida, de modo geral. Esses impulsos são aquisitivos, e podem ser chamados, em conjunto, de “apetite aquisitivo”. À segunda categoria pertence o apetite pelos alimentos requintados e por todos os luxos; são impulsos que levam ao consumo improfícuo, e podem ser denominados de “apetite de prodigalidade”. Tem-se aqui uma base para distinguir a oligarquia da democracia: a primeira se fundamenta no apetite aquisitivo; a segunda, não só nele, mas também no apetite pródigo. Poder-se-ia fundamentar a tirania exclusivamente no apetite de prodigalidade, mas Platão acha que a natureza peculiar da tirania convida a uma análise mais profunda da composição do apetite; e, no começo do Livro Nono da República, ensina a distinguir entre os apetites naturais ou legítimos e os artificiais ou ilegítimos. Estes últimos (...) são o elemento bestial da alma que se manifesta na tirania, e que a tirania gera. (...) Assim, a oligarquia busca a riqueza até perecer decomposta pela riqueza acumulada; a democracia busca a liberdade até que esta, em excesso, a arruína. (...) a democracia, por exemplo, deriva do desejo de se viver como se quer, livremente; a tirania se baseia nos desejos da carne e no “cupido dominandi” que caracterizam as feras.
Há, além do desejo, um outro sentido a aflorar, a ganância que põe de lado o direito, constituído pela lei. Assim, a tirania, a oligarquia e o que – hoje – se chama deformação da democracia , têm em comum a primazia do desejo, ou, na linguagem platônica, dos apetites, sobre a lei e o respeito a ela devidos. Bem conduzida, e esse é um risco inerente ao sistema baseado em maiorias, a massa popular se transforma em joguete nas mãos dos grandes oradores, perdendo de vista a tópica republicana, e tende a crer que a única saída é a expropriação dos ricos e que a política nada mais é que instrumento de espoliação do excedente produzido.
O desejo é então, conforme Ribeiro (2000, p.14), em um primeiro plano, “ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência”.
Nas democracias modernas, o desejo cedeu lugar aos interesses, entendidos os últimos em uma perspectiva econômica, contrapondo-se à virtude, aquela ética da convicção explicitada por Weber e que, desde Maquiavel, é desqualificada como inviável no plano político.
A temática republicana radica, diferentemente da democracia, na renúncia às vantagens privadas em prol da coisa pública. Assim, Montesquieu (1996,33) reafirma que a virtude é o princípio básico da República e que :
Quando cessa essa virtude, a ambição entra nos corações que estão prontos para recebê-la, e a avareza entra em todos. Os desejos mudam de objeto; o que se amava não se ama mais, era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo fugido da casa de seu senhor; o que era máxima é chamado rigor; o que era regra chamam-no incomodo; o que era cuidado chamam-no temor. É na frugalidade que se encontra a avareza, não no desejo de possuir. Antes o bem dos particulares formava o tesouro público, mas agora o tesouro público torna-se patrimônio dos particulares.
A questão republicana, que se coloca em destaque, desde o período romano é que aqueles que fazem as leis são os mesmos que devem obedecê-la. Assim Cícero, o grande defensor da República Romana (2004,p. 56):
Quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão; uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com sua situação pessoal, outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu [...] Entregar-se inteiramente à Pátria; não deve ter por finalidade o poder e a riqueza, seus cuidados devem ser tanto pela coisa particular como pela geral; nunca chegar a expor quem quer que seja ao ódio público por falsas acusações, e ser tão seguro ao que prescrevem a honradez e a justiça que antes de se afastar deles estará sempre disposto a afrontar as barreiras arriscando a própria vida.
A República se torna um regime de auto-contenção dos desejos, uma virtude de abnegação, em que aqueles que fazem as leis, não as fazem somente para que outros as cumpram, mas também para si mesmos. Deste modo, num regime republicano não vige o império da maioria, mas o império da lei que – a todos - cumpre reverenciar. Numa linguagem psicanalítica, a democracia seria o id, os instintos e desejos mais selvagens e sem controle; o povo seria o ego, sempre duvidoso de qual caminho seguir, necessitando orientação e quase sempre pronto a afogar-se na satisfação do id; e a República seria o superego, o controle moral e virtuoso que é capaz de botar freios nos instintos, tornando os cidadãos mais capazes e dignos de sobrepor os interesses públicos aos particulares .
2.4 Kant e Rawls: fundamentos de uma República como Liberdade
Para Kant (2004), o Estado de direito é definido como a reunião de homens sob o império das leis, princípios emanados da Razão. Kant define como essenciais os princípios de que o homem é livre enquanto homem; que todos são iguais enquanto súditos da lei e que, não menos importante, cada individuo é autônomo enquanto cidadão. Faltando qualquer desses elementos, não se pode dizer que o Estado seja fruto da Razão humana .
Assim BÖCKENFÖRDE (2000, p.127) traduz a concepção pretendida:
Na discussão jurídico-público da atualidade, sem dúvida, o conceito de República é utilizado e definido em um sentido material. A chave desta definição – defendida por Cícero e, mais tarde, acentuada sobretudo por Kant – é a idéia de que o Estado é uma comunidade pública (res publica): nela o domínio não se deve exercer segundo os interesses individuais ou de um grupo, mas em razão do que é melhor para a comunidade.; ademais, a constituição do estado é compreendida como uma ordenação dos cargos públicos através da lei – sobre uma base de igualdade e liberdade dos cidadãos – com tarefas e competências especificamente circunscritas, onde não se exerce um domínio individual e sim se buscam os interesses e objetivos ordenados e a liberdade na vida em comum; finalmente, implica uma forma correspondente de entender o Estado como res publica por parte dos cidadãos (...) se refere, pois, à razão mesma de ser do domínio estatal, ao princípio que conforma seu conteúdo e à sua configuração concreta de acordo com este princípio. Neste conceito de República estão incluídos ou relativizados a forma de estado – elementos do estado de Direito, mas, para além disso, tem a função de estabelecer uma orientação normativa para a finalidade da ação do Estado. (Destaque acrescentado)
Rawls (2000) trabalha com a idéia de dois princípios de justiça: o princípio da prioridade da liberdade, que prescreve que os direitos civis e políticos sejam distribuídos igualmente entre os cidadãos e o princípio da equidade, que só permite desigualdades sociais e econômicas na medida em que estejam adstritas a possibilidades abertas a todos e que sejam em benefício dos menos aquinhoados da sociedade.
A visão rawlsiana se aproxima da idéia de um consentimento, um contrato hipotético, fundado na eleição racional que tem por base o interesse. Rawls (2000) sustenta que os primeiros homens a fazer o contrato, em sua posição originária, são egoístas. Por isso trabalha com a idéia de véu da ignorância, que nada mais é do que o impedimento que têm de conhecer quem são e quais são seus interesses, isto é, em que pontos da pirâmide social estarão. O pressuposto do egoísmo e da ignorância podem assim ser equivalentes a imparcialidade e conhecimento.
A teoria de Rawls, próxima à de Kant, sustenta que um juízo moral é verdadeiro quando deriva de um princípio que seria aceito na posição original, vale dizer, que deriva de um princípio geral, universal, público, final, que seria aceito unicamente em condições de imparcialidade, racionalidade e conhecimento dos direitos relevantes. Para Rawls (2000), o construtivismo político é uma visão relativa à estrutura e conteúdo de uma concepção política. Depois de se obter o equilíbrio reflexivo, os princípios políticos de justiça se apresentam como resultado do procedimento de construção (conteúdo=estrutura). Nesse procedimento – conforme à posição original – os agentes racionais, representando os cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, realizam a escolha dos princípios públicos de justiça reguladores da estrutura básica social. Esse procedimento, que demonstraria a síntese dos requisitos relevantes da razão prática, revelando a gênese dos princípios de justiça, está na principiologia da razão prática conjugada com as concepções de sociedade e pessoa, obtidas através do equilíbrio reflexivo, como procedimento. Procedimento este adequado às restrições formais: generalidade, universalidade, publicidade, finalidade. Implica reafirmar; os procedimentos pelos quais os primeiros princípios são eleitos devem estar em conformidade com a razão prática, num caso de justiça processual pura.. E continua afirmando que a importância de uma concepção política construtivista está na relação com o pluralismo razoável e a necessidade democrática de assegurar um consenso sobreposto quanto aos valores políticos fundamentais; todos em conformidade com a razão prática.
Kant e Rawls se aproximam do ideal de liberdade do homem e procuram, com seu pensamento, fornecer bases e critérios para que o Estado seja, sempre mais, um potencializador da liberdade dos cidadãos .
3. O Estado: uma tentativa de interpretação do poder
Conforme BOBBIO:
O conceito de política, entendida como forma de atividade ou práxis humana, está estreitamente ligado ao conceito de poder. O poder foi definido tradicionalmente como “consistente nos meios para se obter alguma vantagem” [Hobbes] ou, de modo análogo, como “o conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados” [Russell]. Sendo um desses meios o domínio sobre outros homens (alem do domínio sobre a natureza), o poder é definido ora como uma relação entre dois sujeitos, na qual um impõe ao outro a própria vontade, determinando-o seu, malgrado o comportamento: mas como o domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas meio para se obter “alguma vantagem”, ou, mais exatamente, “os efeitos desejados”, de modo não distinto do domínio sobre a natureza, a definição de poder como tipo de relação entre os sujeitos deve ser integrada à definição do poder como a posse dos meios (dos quais os dois principais são o domínio sobre os outros homens e o domínio sobre a natureza) que permitem obter, exatamente, “alguma vantagem”, ou os “efeitos desejados”. O poder político pertence à categoria do poder de um homem sobre outro homem (não do poder do homem sobre a natureza). Essa relação de poder é expressa de mil maneiras, nas quais se reconhecem expressões típicas da linguagem política: como relação entre governantes e governados, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos, entre comando e obediência .
Segundo TILLY, analisando os estados europeus sob o prisma da coerção e do capital:
Com efeito, parecem tão naturais a emergência dos estados nacionais, a expansão dos exércitos nacionais e a longa hegemonia da Europa que os estudiosos raramente indagam porque as suas alternativas plausíveis não prevaleceram no continente europeu: tanto quanto os sistemas de impérios regionais com frouxas articulações que prosperaram na Ásia, na África e na América pouco depois de 900 a.C. uma parte da resposta reside, sem dúvida, na dialética das cidades e estados que se desenvolveram em poucas centenas de anos após 990. Isso porque a existência de uma rede urbana densa e desigual, simultânea a uma divisão em inúmeros estados bem definidos e mais ou menos independentes, acabou por separar a Europa do resto do mundo. Por trás das mudanças geográficas das cidades e estados atuava a dinâmica do capital (cujo campo preferido eram as cidades) e da coerção (que se cristalizava sobretudo nos estados). Os estudos sobre as interações das cidades e dos estados logo se transformaram em pesquisas sobre o capital e a coerção.50
(...)
A historia diz respeito ao capital e à coerção. Narra os recursos que os aplicadores da coerção, que desempenharam um papel importante na criação dos estados nacionais, extraíram, para os seus propósitos, dos manipuladores de capital, cujas atividades geraram as cidades.63
(...)
E o que dizer da coerção? A coerção compreende toda aplicação combinada – ameaçada ou real – de uma ação que comumente causa perda ou dano às pessoas ou às posses de indivíduos ou grupos, os quais estão conscientes tanto da ação quanto do possível dano. Onde o capital define um domínio de exploração, a coerção define um campo de dominação.67
(...)
Referências Bibliográficas:
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________ Teoria Pura do Direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. 2ª Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
_________ Teoria do Direito (Primeiras Lições). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
REGLA, Josep Aguiló. La derrogación de normas em La Obra de Hans Kelsen. DOXA, 10/1991, pag 223-258.
Normas Independentes: Um estudo de sua existência (ou possibilidade de) no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
1. Introdução:
Pretende-se, com esse trabalho, explicitar o conceito de “norma independente”. Após essa explicitação, busca-se compreender o Sistema Normativo Brasileiro e verificar, descritivamente, se tal modelo pode ser utilizado para melhor compreender alguns fenômenos normativos, notadamente aqueles que vigem e produzem efeitos, mesmo que não haja norma processualmente elaborada.
Explicita-se que, nesse artigo, será utilizado para fins de conceituação de um sistema normativo, a teoria de Hans Kelsen. Assim, toda e qualquer norma, segundo o conceito do direito, deriva de outra norma de hierarquia superior, derivando todas da norma fundamental “última constituição histórica de um povo, não mais em disputa”. Entretanto, há normas que produzem efeitos sem que tenham sido regularmente produzidas. Ou existem mesmo que não tenham sido elaboradas pelo Legislativo ou foram declaradas nulas [e, portanto, sem eficácia] pela Corte Constitucional, por algum vício, seja ele formal ou material.
Aqui, mais explicitamente, se buscará analisar três situações distintas, a partir do conceito de “norma independente”: 1) a coisa julgada inconstitucional; 2) a declaração – pela Corte Suprema – da Lei ainda Constitucional, mas que caminha para a inconstitucionalidade e expurgo do Sistema e, 3) a modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade.
São, certamente, três fenômenos que poderiam ser melhor compreendidos à luz da teoria kelseniana e que, portanto, merecerão destaque nesse estudo.
2. O Conceito de Norma, em Hans Kelsen, e de norma independente:
Como se sabe, Kelsen, ao escrever a Teoria Pura do Direito, buscou apenas e tão somente descrever o que seriam os típicos caracteres da ciência, distinguindo (mas não menosprezando) o objeto da ciência daquelas pretensões da Sociologia e da Filosofia do Direito. Ou, em suas palavras:
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo – uma teoria geral do Direito, não uma apresentação ou uma interpretação de uma ordem jurídica especial. A partir de uma comparação de todos os fenômenos classificados sob o nome de direito, procura descobrir a natureza do próprio Direito, determinar sua estrutura e suas formas típicas, independentemente do conteúdo variável que apresenta em diferentes épocas e entre diferentes povos. Dessa maneira, ela deduz os princípios fundamentais por meio dos quais qualquer ordem jurídica pode ser compreendida. Como teoria, seu único propósito é conhecer seu objeto. Responde à questão do que é o Direito, não do que deve ser. Esta segunda questão é uma questão da política, ao passo que a teoria pura do Direito é ciência.
(...)
Libertar o conceito de Direito da idéia de justiça é difícil porque eles são constantemente confundidos no pensamento político e na linguagem comum, e porque essa confusão corresponde á tendência de permitir que o Direito positivo afigure-se como justo. (...) mas a Teoria Pura do Direito simplesmente declara-se incompetente para responder tanto à questão de ser dado Direito justo ou não como à questão mais fundamental do que constitui a justiça. A Teoria Pura do Direito – uma ciência – não pode responder a essas questões porque elas absolutamente não podem ser respondidas cientificamente .
Desse modo, observando os fenômenos típicos do Direito, em todas as suas manifestações (consuetudinárias ou positivadas por declaração racional de um determinado órgão competente para tanto), pôde KELSEN elaborar uma Teoria Descritiva das Normas, que aqui será brevemente explicitada.
Conforme a lição de SGARBI , a Teoria normativa de Kelsen foca em três notas importantes: 1) de que o direito é técnica social específica; 2) de caráter coercitivo; e 3) que é uma ordem diversa da natural. Para alem dessas notas, insta observar com SGARBI que:
Em síntese, há três ingredientes a partir dos quais Kelsen constrói sua idéia de “direito”: o primeiro é formal; o segundo é material; e o terceiro é funcional. O “ingrediente formal” consiste na percepção de que as normas são estruturas de “dever” e que, portanto, o direito é composto por “normas”, por “prescrições” para as condutas humanas, enfim. O “ingrediente material” respalda-se no entendimento de o conteúdo das normas jurídicas serem “sanções negativas”, isto é, são, sempre, previsões de coação. O terceiro ingrediente, “ingrediente funcional”, apóia-se na compreensão de o direito ser uma “específica técnica social”. Nesse particular, o papel da ciência jurídica é descrever este objeto, as estruturas de dever com essa tríplice composição enunciada. Entretanto, é imprescindível que isso seja feito de acordo com o “princípio de imputação”, ou seja, a específica percepção de serem esses vínculos de “fato” e “conseqüência” estabelecidos pela vontade humana, não decorrência da natureza .
Kelsen, em linhas superficiais, optou por uma descrição genética das normas: cada norma deriva de outra que lhe é imediatamente superior, numa cadeia de autorizações de vontades, em que se vai do geral para o particular. Assim, em síntese, no topo da cadeia (ou pirâmide) normativa se encontra a norma fundamental que Kelsen designará como a constituição histórica primeira não mais em disputa. Aqui há que se entender essa Constituição histórica primeira em dois sentidos possíveis: a) a primeira constituição, geralmente coincidente com a independência/surgimento de um novo Estado; b) a Constituição em vigor. Ou, nos termos de SGARBI:
Mas, como a Constituição também pertence ao mundo normativo, tem-se inelutavelmente a questão da validade da Constituição. Sendo assim, pode-se perguntar qual é o seu fundamento, ou por qual razão a ela devemos obediência. Porque, se uma norma somente obtém tal status a partir de uma outra norma, é preciso admitir que deva haver uma outra norma que fundamente a Constituição. A Constituição, nesse passo, pode ter sido introduzida mediante uma lei com base na Constituição anterior, pelo que a validade da Constituição depende da Constituição anterior, da qual provém. Chegando-se à Constituição anterior, todavia, é possível seguir o mesmo processo até a pergunta sobre a razão de a observarmos.
Dessa forma, a validade pode ser rastreada ate alcançar-se a Constituição histórica primeira, a primeira Constituição daquela ordem jurídica, normalmente marcada por um ato de independência de um Estado frente a outro Estado. Mas, neste final do caminho, poder-se-ia, outra vez, questionar qual o fundamento de validade desta Constituição histórica primeira, porque, na falta de alguma fundamentação normativa, todas as demais normas perderiam seus respectivos suportes de validade. Essa busca sem fim constitui o que se pode aqui designar de “problema da fundamentação normativa”. Portanto, o problema da fundamentação normativa expressa a necessidade de se encontrar, em termos últimos, o fundamento normativo das normas.
É exatamente para fornecer resposta a esse regresso provocado pelo imperativo de se indicar, sempre, a “norma validamente superior” que Kelsen elabora a “teoria da norma fundamental”. Segundo Kelsen, a norma fundamental equivale á postura, necessária, de se considerar válida, e, portanto, Omo ponto de referencia jurídico-positivo inicial a Constituição histórica primeira não mais em disputa, pois esta é uma pressuposição imprescindível para poderem-se identificar as normas da ordem jurídica .
Assim, a norma fundamental é o argumento de validade de toda e qualquer norma pertencente àquele ordenamento jurídico. Assim explicita KELSEN:
Se se pergunta pelo fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada ordem jurídica, a resposta apenas pode consistir na recondução à norma fundamental desta ordem jurídica, quer dizer: na afirmação de que esta norma foi produzida de acordo com a norma fundamental. (...)
Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada. A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição concretamente determinada, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas .
KELSEN elaborou uma teoria das normas não-autônomas que difere, no conceito do que aqui se busca, da idéia de norma independente. Ela pode ser assim descrita, conforme REGLA:
Na teoria pura, Kelsen caracteriza a ordem jurídica como uma ordem a conduta humana, coativa e normativa. Assim, Kelsen sustenta que ao ser concebido o ordenamento jurídico como uma ordem coativa, a norma jurídica tem que ou bem estatuir um ato coativo ou bem estar em uma relação essencial com uma norma que a estatua, porque, em outro caso, a norma não poderia ser interpretada como objetivamente jurídica. A partir dessa idéia, Kelsen articula a distinção entre normas jurídicas autônomas e normas jurídicas não-autônomas. As primeiras são as que estabelecem uma conduta como obrigatória ao estatuir a conduta contrária como condição para uma sanção; e são idependentes porque elas participam da propriedade que caracteriza a ordem jurídica e que é tomada como relevante para a construção dessa distinção, isto é, a nota de coatividade. Frente a estas normas independentes, Kelsen fala de normas jurídicas não-autônomas. Seu caráter de não-autônomas vem de que elas não participam da referida propriedade da ordem jurídica e, portanto, necessitam estar em uma relação essencial com uma norma que estatua um ato coativo. Se não se verifica essa relação essencial, a norma não poderia ser interpretada como objetivamente jurídica; passaria a ser considerada como “juridicamente irrelevante”. Em outras palavras, essa norma não poderia ser interpretada como válida .
Kelsen, ao afirmar a nota de coercitividade que é típica do Direito, distingue as normas em razão de sua autonomia para, diante da conduta vedada, impor a sanção correspondente. Em não havendo essa necessária conjugação norma-coerção, está-se diante das normas não-autônomas que seriam – basicamente – dos seguintes tipos:
a) Normas que simplesmente impõem deveres ou obrigações. Não estando em relação direta e essencial com uma norma que imponha a sanção deve se considerar como juridicamente irrelevante. Mantendo-se em relação essencial com uma norma que imponha sanção é juridicamente supérflua pois que a norma que estatuiu a sanção já abarcaria seu conteúdo.
b) Normas permissivas de conduta. Elas são não-autônomas na medida em que apenas delimitam o domínio de validade e alcance de uma norma que proíba determinada conduta.
c) As normas que conferem competência para produzir normas.
d) Normas interpretativas de outras normas.
e) Normas derrogatórias.
Outro é o caso do que aqui se designa como normas independentes: elas não se confundem com o conceito de normas autônomas em Kelsen. Normas independentes, aqui, são aquelas que se presumem válidas e eficazes, que produzem seus efeitos, mas que, por alguma razão, são dotadas de irregularidades. Tais irregularidades – ou vícios – as colocariam fora do Sistema Jurídico. Entretanto, permanecem surtindo seus efeitos porque, para declaração de sua invalidade ou de sua ineficácia, precisam de que um órgão (competente para tanto) efetue o seu expurgo do ordenamento.
Assim explicita SGARBI:
Secularmente, a teoria do direito discute o status desses materiais e o como eles devem ser considerados nos conjuntos normativos. Porque se é comum tê-los como “materiais jurídicos”, é esperável que sejam, ao menos, tidos como materiais diferenciados. Essa diferenciação é freqüentemente explicitada através da adjetivação “irregular” e, as normas que sofrem com essa patologia, de normas “irregulares”. Em suma, por “normas irregulares” têm-se nomeado as normas que foram produzidas sem se atender todas as exigências normativas presentes no conjunto normativo. Na resolução desta questão, como vimos, as ordens jurídicas aparelham suas autoridades normativas com a técnica da “nulificação”. “Nulificar”, assim, é sinônimo de “eliminação” de materiais jurídicos incorretos. Portanto, é mecanismo de modificação do conjunto normativo visto que toda anulação real altera a composição de suas peças afetando direitos subjetivos a esses materiais relacionados.
(...)
No entanto, dessa afirmação não decorre que essas atividades sejam sempre “corretas”, ou seja, que tenham sido desempenhadas de modo adequado ou lídimo. Diz-se, por conseguinte, em nomenclatura básica, que uma norma é “inválida” quando é produzida sem atender aos critérios estabelecidos pelas normas de produção jurídica. “Invalidade”, assim, não se confunde com “inexistência”. Para uma norma “existir”, isto é, pertencer ao conjunto normativo (ainda que incorretamente), basta ser produzida por uma autoridade normativa competente e promulgada; para ser “válida” (adequada às suas exigências) requer-se que “cumpra” toda a regência “procedimental” e “substancial”.
Portanto, uma norma “inválida” é uma norma “existente juridicamente”, mas irregular. Ela pertence ao conjunto normativo, mas de modo viciado, pelo que é passível das técnicas de “nulificação”, por exemplo, do “controle de constitucionalidade” .
Ora, essas normas existentes, mas inválidas, continuam existindo no ordenamento (e produzindo seus efeitos) em razão de um “otimismo” existente de que toda e qualquer norma pertencente a um determinado ordenamento (historicamente definido) é “presumivelmente” válida. Esse otimismo, conforme SGARBI, não se aplica às normas independentes pois que elas (as normas independentes) não podem ser predicadas pela validade/invalidade, mas existem apenas e tão somente em razão da estabilidade política.
Dito isto, há que se observar que essa presunção de validade de toda e qualquer norma produzida (melhor seria dizer existência de toda e qualquer norma, mas não de validade, pois que tal efeito pressupõe outros critérios) não implica em que o Ordenamento não tenha meios para retirar do seu seio as normas que lhe sejam contrárias. Se o vício ou irregularidade afrontar a Constituição tem-se uma inconstitucionalidade, se afrontar uma lei, uma ilegalidade. De todo modo, elas permanecem produzindo seus efeitos enquanto não houver a declaração do órgão competente para tanto. Em regra, tal declaração se dá por meio do Poder Judiciario, mas, em determinados casos, tal declaração (in concreto ou in abstracto) pode ser realizada por Órgãos da Administração ou mesmo do Senado Federal .
Observe-se que o Ordenamento Jurídico Brasileiro ainda tem uma outra peculiaridade: é que o controle de constitucionalidade de normas no Brasil pode ser realizado por qualquer magistrado, durante verificação do caso concreto, e também pelo Supremo Tribunal Federal, seja em relação ao caso concreto, seja no controle abstrato de normas. Isso implica que poderá haver, conforme entendimento diverso de cada magistrado, aplicando-se as normas e o controle de constitucionalidade, normas que sejam consideradas válidas e, ao mesmo tempo, inválidas, a depender da interpretação que se dê.
Feitas tais observações, passa-se agora a analisar os casos de possibilidade (ou não) de existência de normas independentes no Ordenamento Brasileiro, notadamente no que toca à coisa julgada, à Lei ainda Constitucional e à modulação temporal das normas na Declaração de Inconstitucionalidade efetuada pelo Supremo Tribunal Federal.
3. A Coisa Julgada Inconstitucional
Um dos grandes temas a que se dedicam hoje os processualistas é, justamente, os efeitos (ou a produção de) da Coisa Julgada Inconstitucional.
Em regra, o fenômeno da Coisa Julgada Inconstitucional decorre de que determinada norma aplicada pelo Juiz ou órgão judicante, ao caso concreto, seja posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em controle abstrato de normas.
Desse modo, tendo existido decisão transitada em julgado com base em norma posteriormente declarada inconstitucional ter-se-ia, segundo alguns, uma norma (as decisões judiciais, também elas, são normas, aplicadas na concretude do caso apresentado em juízo, conforme Kelsen) independente que produziria efeitos mesmo que estivesse a norma originária da decisão invalidada por declaração formal.
Muito se questiona sobre a possibilidade de reversão de tal sentença transitada em julgado, após a decisão de inconstitucionalidade, por estar ela com vício insanável. E muito se discute sobre qual (ou quais) seriam os remédios a se aplicar para sanear o ordenamento.
Entretanto, aqui se quer crer que mesmo a coisa julgada com superveniência de declaração de inconstitucionalidade, ainda assim não é (ou pelo menos não o é em sentido estrito) norma independente, já que seus efeitos permanecem em razão de comando constitucional.
Isso porque a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, determina que a Lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Ora, se se considera uma decisão judicial como norma, a validade de tal norma se encontra justamente no comando constitucional que determina sua imutabilidade.
Ademais, difícil seria se encontrar um remédio para a nulificação de um ato normativo (a sentença/decisão judicial transitada em julgado) se ele já teria produzido todos os seus regulares efeitos. Exemplifica-se com uma ação de despejo fundada em norma prevista no ordenamento. O despejo, com as conseqüentes sanções, inclusive a execução do débito, já teria ocorrido, v.g., quinze anos atrás e só agora o Supremo Tribunal teria declarado, em controle abstrato, a inconstitucionalidade da norma. Como retirar tal dispositivo (a sentença/decisão) do Ordenamento concretizado? Impossível se retornar ao status quo ante, o que demonstraria aqui que os defensores da independência da norma estariam com a razão.
Ademais, se se tem em conta que a Lei, no comando constitucional, abarca toda e qualquer manifestação normativa do Estado (com força coercitiva) há que se entender que também ali esta incluída a decisão da Suprema Corte. Ou seja, a Suprema Corte, ao declarar a inconstitucionalidade de norma, está normatizando, mormente quando declara em sede abstrata, pois que ela retira do Ordenamento a norma impugnada. E não se pode negar que a decisão judicial é, também ela, uma norma validamente expedida. Discorda-se, portanto, da afirmação de Kelsen de que as decisões judiciais não seriam normas, mas apenas e tão-somente regras de direito.
Aqui se percebe a jurisprudência, ou a decisão judicial, como norma, com poder coercitivo, que afeta as partes e as condiciona ao cumprimento da mesma medida judicial.
Desse modo, percebe-se que mesmo a coisa julga inconstitucional (por declaração superveniente de inconstitucionalidade) não se enquadra no rol de normas independentes porque produziu seus regulares efeitos e porque se encontra a decisão amparada por comando constitucional que impede sua mutabilidade.
Não por acaso o Legislador, numa tênue tentativa de dar solução ao problema, não permitiu a mutabilidade da decisão, mantendo-a intocável. Apenas, na reforma do Código de Processo Civil, retirou um dos requisitos de sua exeqüibilidade. Explica-se; toda e qualquer sentença/decisão transitada em julgado é passível de execução, como titulo judicial que é. Como todo titulo (judicial ou extrajudicial) há alguns requisitos exigidos para a execução, a saber; liquidez, certeza e exigibilidade. A reforma do Processo Civil apenas retirou a exigibilidade do titulo, permanecendo as demais notas características. Assim, mesmo o Legislador não pôde (e não pôde em razão do expresso comando constitucional) permitir a mutabilidade da Decisão transitada, permitindo-se apenas e tão somente que, em estando o título por se executar, ou em execução, não seja exigível e se possa opor contra ele a inconstitucionalidade declarada.
Desse modo, entende-se, contrariamente ao que foi expresso por Kelsen, que toda e qualquer decisão judicial (sentença ou decisão colegiada) é produção de norma entre as partes litigantes. Entende-se mais, que a chamada “coisa julgada inconstitucional” não pode ser considerada norma independente porque a produção de seus efeitos se encontra escorada no comando constitucional que impede a modificação da coisa julgada.
4. A Lei ainda Constitucional
Uma outra forma para se apreciar sobre a possibilidade de existência de norma independente, que produza seus efeitos em razão de “existir”, mesmo que não se possa considerá-la como válida, é a Lei ainda constitucional, mas que se tornará, conforme declaração do Supremo Tribunal Federal, em Lei Inconstitucional.
Assim expressa MENDES:
Em decisão de 23.3.1994, teve o Supremo tribunal federal oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a defensoria pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados [HC 70.514, julgamento em 23.3.1994].
(...)
Da mesma forma pronunciou-se o Ministro Moreira Alves, como se pode depreender da seguinte passagem de seu voto:
Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministerio Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstancia não mais se verificar.
(...)
Fica evidente, pois, que o Supremo Tribunal deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da declaração de inconstitucionalidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei. (destacou-se) .
Ora, tal declaração pode (e deve) ser considerada como uma norma que, a partir da declaração do STF, passa a agir de maneira independente pois que seu fundamento não mais se encontra no Ordenamento Jurídico mas em fatos que ocorrem ao largo do prescrito. O STF, claramente, verifica a inconstitucionalidade da norma, mas, dadas certas circunstâncias (no caso, a ainda frágil estrutura da Defensoria, que a impede de atuar em condições de igualdade frente ao Ministério Público) aceita que a norma, mesmo sendo inconstitucional, produza (e continue produzindo) seus efeitos até que a plenitude dos meios possibilite o expurgo da norma.
Tal fato, por si só, demonstra que, após a declaração da ainda constitucionalidade, que caminha para a inconstitucionalidade, tal norma continua produzindo seus efeitos pois que a própria Corte Constitucional percebe que ela é inválida, mas a mantém existente e dotada de eficácia . E só essa declaração permite, por si só, a certeza de que a norma, após a decisão do STF, passou a existir e produzir efeitos independentemente de sua vinculação ao Ordenamento Jurídico. Mais, a declaração da Corte permite se afirmar com clareza que a norma impugnada não é válida, ela existe e produzirá efeitos apenas e tão somente enquanto uma situação que não pode ser modificada pelo Ordenamento perdurar.
5. A modulação temporal na declaração de inconstitucionalidade de norma pelo Supremo Tribunal Federal
Outra probabilidade de análise da possibilidade de existência de normas irregulares que produzem seus efeitos, permanecendo os mesmos no mundo, é a permissão de modulação temporal dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade pelo STF.
Como se sabe, a Lei permite que o STF, em controle de constitucionalidade, efetue o que se convencionou chamar de modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Isso despontou como novidade no controle de constitucionalidade brasileiro já que a tradição jurídica brasileira sempre considerou que a norma impugnada e declara inconstitucional era nula de pleno direito, não podendo existir nem produzir efeitos desde a sua edição.
Esse conceito de nulidade=inexistência=invalidade de norma considerada inconstitucional prevaleceu no Controle de Constitucionalidade considerando-se, portanto, durante muito tempo, toda declaração de inconstitucionalidade efetuada pela Corte como com efeitos ex tunc, isto é, desde o nascedouro. A declaração de inconstitucionalidade, desse modo, removia, ou buscava remover, não só a norma mas todos os efeitos jurídicos por ela produzidos, esterilizando desde sua promulgação.
Com a possibilidade de modulação dos efeitos da declaração, a Corte Constitucional pôde, a partir daí, modular os efeitos, decidindo-se a partir de que momento a norma deixaria de produzir seus regulares efeitos e seria efetivamente extirpada do Ordenamento.
Assim, a declaração de inconstitucionalidade não mais que dizer que a norma foi expurgada (e seus efeitos) desde o nascedouro, mas que, em circunstancias especificas e mediante aprovação de – no mínimo – 2/3 dos Ministros, pode-se determinar a partir de qual momento ela (a norma) deixará de produzir seus efeitos.
Assim, aquele efeito anterior da declaração (de que os efeitos implicavam no expurgo da norma desde a sua criação) passou a ter permissivo para modulação. Não mais os efeitos ex tunc, mas a possibilidade de se aplicar os efeitos ex nunc ( a partir de agora).
Há que se considerar – portanto – que o STF, quando aplica a modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade, determinando que os negócios e efeitos jurídicos produzidos por aquela norma até a data estipulada são válidos e exigíveis, só tornando a norma ineficaz e inválida a partir do momento da declaração de inconstitucionalidade, está permitindo – claramente – que haja no Sistema Jurídico Brasileiro normas independentes, irregulares, que, apesar de declaradamente não serem válidas (ou por vício formal, ou por vício material), produziram efeitos que continuarão exigíveis em razão da modulação temporal.
6. Conclusão
Buscou-se aqui explicitar o que seria a norma independente. Demonstrou-se que a “norma independente” não equivale à norma autônoma do pensamento de Kelsen pois que essa tem ligação com o elemento de coercitividade e aquela com a questão de sua validade.
Demonstrou-se que a análise das normas não pode se prender ao conceito de validade pois que tal é uma presunção típica do otimismo do Ordenamento que parte do pressuposto que não abriga normas incompatíveis com suas normas de produção de normas. Assim, pode existir normas que, a par de não serem válidas em razão de algum vício, presumem-se válidas e produzem efeitos jurídicos enquanto não expurgadas do Ordenamento por declaração de Órgão competente.
Tais normas, aqui chamadas de normas independentes, podem “existir”, mesmo não sendo “válidas.
Buscou-se demonstrar alguma aplicação desse conceito ao Ordenamento Jurídico Brasileiro pela análise de três possibilidades: a) a coisa julgada inconstitucional; b) a Lei ainda Constitucional; e, c) A modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade.
Ao fim, defendeu-se que a coisa julgada inconstitucional não pode ser considerada norma independente pois que sua imutabilidade decorre diretamente de comando constitucional, tendo o Legislador preservado sua imutabilidade mesmo quando da reforma do Código de Processo Civil.
Entretanto, deixou demonstrado que há aplicabilidade do conceito de norma independente (ou irregular) com seus necessários efeitos (inclusive com perfazimento e aperfeiçoamento de negócios jurídicos válidos) quando se trata de Lei ainda constitucional ou da modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
Quanto à Lei ainda Constitucional, o STF declara claramente que ela é inválida (ou por vício formal ou por vício material) mas, por circunstancias alheias ao ordenamento mas que existem no mundo, dá-lhes o poder de continuarem a produzir efeitos enquanto perdurar a situação apontada. Assim, a Lei ainda Constitucional “existe”, produz efeitos, mesmo com a Corte declarando sua invalidade perante a Constituição, num claro reconhecimento da imperfeição do Sistema.
Quanto à modulação temporal, o STF, em casos específicos, reconhece que a norma é inválida, mas só lhe retira a possibilidade produzir efeitos a partir do momento0 da declaração.
Assim, a norma “existiu” e, contrariando toda a tradição do Direito
Brasileiro, teve reconhecidos os efeitos jurídicos que produziu ao longo do tempo até a modulação. Em outras palavras, o STF reconheceu que ela não era válida (por vício formal ou substancial) mas lhe reconhece os efeitos produzidos, num claro reconhecimento de sua independência frente ao Ordenamento.
Referências Bibliográficas:
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________ Teoria Pura do Direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. 2ª Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
_________ Teoria do Direito (Primeiras Lições). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
REGLA, Josep Aguiló. La derrogación de normas em La Obra de Hans Kelsen. DOXA, 10/1991, pag 223-258.
1. Introdução:
Pretende-se, com esse trabalho, explicitar o conceito de “norma independente”. Após essa explicitação, busca-se compreender o Sistema Normativo Brasileiro e verificar, descritivamente, se tal modelo pode ser utilizado para melhor compreender alguns fenômenos normativos, notadamente aqueles que vigem e produzem efeitos, mesmo que não haja norma processualmente elaborada.
Explicita-se que, nesse artigo, será utilizado para fins de conceituação de um sistema normativo, a teoria de Hans Kelsen. Assim, toda e qualquer norma, segundo o conceito do direito, deriva de outra norma de hierarquia superior, derivando todas da norma fundamental “última constituição histórica de um povo, não mais em disputa”. Entretanto, há normas que produzem efeitos sem que tenham sido regularmente produzidas. Ou existem mesmo que não tenham sido elaboradas pelo Legislativo ou foram declaradas nulas [e, portanto, sem eficácia] pela Corte Constitucional, por algum vício, seja ele formal ou material.
Aqui, mais explicitamente, se buscará analisar três situações distintas, a partir do conceito de “norma independente”: 1) a coisa julgada inconstitucional; 2) a declaração – pela Corte Suprema – da Lei ainda Constitucional, mas que caminha para a inconstitucionalidade e expurgo do Sistema e, 3) a modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade.
São, certamente, três fenômenos que poderiam ser melhor compreendidos à luz da teoria kelseniana e que, portanto, merecerão destaque nesse estudo.
2. O Conceito de Norma, em Hans Kelsen, e de norma independente:
Como se sabe, Kelsen, ao escrever a Teoria Pura do Direito, buscou apenas e tão somente descrever o que seriam os típicos caracteres da ciência, distinguindo (mas não menosprezando) o objeto da ciência daquelas pretensões da Sociologia e da Filosofia do Direito. Ou, em suas palavras:
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo – uma teoria geral do Direito, não uma apresentação ou uma interpretação de uma ordem jurídica especial. A partir de uma comparação de todos os fenômenos classificados sob o nome de direito, procura descobrir a natureza do próprio Direito, determinar sua estrutura e suas formas típicas, independentemente do conteúdo variável que apresenta em diferentes épocas e entre diferentes povos. Dessa maneira, ela deduz os princípios fundamentais por meio dos quais qualquer ordem jurídica pode ser compreendida. Como teoria, seu único propósito é conhecer seu objeto. Responde à questão do que é o Direito, não do que deve ser. Esta segunda questão é uma questão da política, ao passo que a teoria pura do Direito é ciência.
(...)
Libertar o conceito de Direito da idéia de justiça é difícil porque eles são constantemente confundidos no pensamento político e na linguagem comum, e porque essa confusão corresponde á tendência de permitir que o Direito positivo afigure-se como justo. (...) mas a Teoria Pura do Direito simplesmente declara-se incompetente para responder tanto à questão de ser dado Direito justo ou não como à questão mais fundamental do que constitui a justiça. A Teoria Pura do Direito – uma ciência – não pode responder a essas questões porque elas absolutamente não podem ser respondidas cientificamente .
Desse modo, observando os fenômenos típicos do Direito, em todas as suas manifestações (consuetudinárias ou positivadas por declaração racional de um determinado órgão competente para tanto), pôde KELSEN elaborar uma Teoria Descritiva das Normas, que aqui será brevemente explicitada.
Conforme a lição de SGARBI , a Teoria normativa de Kelsen foca em três notas importantes: 1) de que o direito é técnica social específica; 2) de caráter coercitivo; e 3) que é uma ordem diversa da natural. Para alem dessas notas, insta observar com SGARBI que:
Em síntese, há três ingredientes a partir dos quais Kelsen constrói sua idéia de “direito”: o primeiro é formal; o segundo é material; e o terceiro é funcional. O “ingrediente formal” consiste na percepção de que as normas são estruturas de “dever” e que, portanto, o direito é composto por “normas”, por “prescrições” para as condutas humanas, enfim. O “ingrediente material” respalda-se no entendimento de o conteúdo das normas jurídicas serem “sanções negativas”, isto é, são, sempre, previsões de coação. O terceiro ingrediente, “ingrediente funcional”, apóia-se na compreensão de o direito ser uma “específica técnica social”. Nesse particular, o papel da ciência jurídica é descrever este objeto, as estruturas de dever com essa tríplice composição enunciada. Entretanto, é imprescindível que isso seja feito de acordo com o “princípio de imputação”, ou seja, a específica percepção de serem esses vínculos de “fato” e “conseqüência” estabelecidos pela vontade humana, não decorrência da natureza .
Kelsen, em linhas superficiais, optou por uma descrição genética das normas: cada norma deriva de outra que lhe é imediatamente superior, numa cadeia de autorizações de vontades, em que se vai do geral para o particular. Assim, em síntese, no topo da cadeia (ou pirâmide) normativa se encontra a norma fundamental que Kelsen designará como a constituição histórica primeira não mais em disputa. Aqui há que se entender essa Constituição histórica primeira em dois sentidos possíveis: a) a primeira constituição, geralmente coincidente com a independência/surgimento de um novo Estado; b) a Constituição em vigor. Ou, nos termos de SGARBI:
Mas, como a Constituição também pertence ao mundo normativo, tem-se inelutavelmente a questão da validade da Constituição. Sendo assim, pode-se perguntar qual é o seu fundamento, ou por qual razão a ela devemos obediência. Porque, se uma norma somente obtém tal status a partir de uma outra norma, é preciso admitir que deva haver uma outra norma que fundamente a Constituição. A Constituição, nesse passo, pode ter sido introduzida mediante uma lei com base na Constituição anterior, pelo que a validade da Constituição depende da Constituição anterior, da qual provém. Chegando-se à Constituição anterior, todavia, é possível seguir o mesmo processo até a pergunta sobre a razão de a observarmos.
Dessa forma, a validade pode ser rastreada ate alcançar-se a Constituição histórica primeira, a primeira Constituição daquela ordem jurídica, normalmente marcada por um ato de independência de um Estado frente a outro Estado. Mas, neste final do caminho, poder-se-ia, outra vez, questionar qual o fundamento de validade desta Constituição histórica primeira, porque, na falta de alguma fundamentação normativa, todas as demais normas perderiam seus respectivos suportes de validade. Essa busca sem fim constitui o que se pode aqui designar de “problema da fundamentação normativa”. Portanto, o problema da fundamentação normativa expressa a necessidade de se encontrar, em termos últimos, o fundamento normativo das normas.
É exatamente para fornecer resposta a esse regresso provocado pelo imperativo de se indicar, sempre, a “norma validamente superior” que Kelsen elabora a “teoria da norma fundamental”. Segundo Kelsen, a norma fundamental equivale á postura, necessária, de se considerar válida, e, portanto, Omo ponto de referencia jurídico-positivo inicial a Constituição histórica primeira não mais em disputa, pois esta é uma pressuposição imprescindível para poderem-se identificar as normas da ordem jurídica .
Assim, a norma fundamental é o argumento de validade de toda e qualquer norma pertencente àquele ordenamento jurídico. Assim explicita KELSEN:
Se se pergunta pelo fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada ordem jurídica, a resposta apenas pode consistir na recondução à norma fundamental desta ordem jurídica, quer dizer: na afirmação de que esta norma foi produzida de acordo com a norma fundamental. (...)
Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada. A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição concretamente determinada, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas .
KELSEN elaborou uma teoria das normas não-autônomas que difere, no conceito do que aqui se busca, da idéia de norma independente. Ela pode ser assim descrita, conforme REGLA:
Na teoria pura, Kelsen caracteriza a ordem jurídica como uma ordem a conduta humana, coativa e normativa. Assim, Kelsen sustenta que ao ser concebido o ordenamento jurídico como uma ordem coativa, a norma jurídica tem que ou bem estatuir um ato coativo ou bem estar em uma relação essencial com uma norma que a estatua, porque, em outro caso, a norma não poderia ser interpretada como objetivamente jurídica. A partir dessa idéia, Kelsen articula a distinção entre normas jurídicas autônomas e normas jurídicas não-autônomas. As primeiras são as que estabelecem uma conduta como obrigatória ao estatuir a conduta contrária como condição para uma sanção; e são idependentes porque elas participam da propriedade que caracteriza a ordem jurídica e que é tomada como relevante para a construção dessa distinção, isto é, a nota de coatividade. Frente a estas normas independentes, Kelsen fala de normas jurídicas não-autônomas. Seu caráter de não-autônomas vem de que elas não participam da referida propriedade da ordem jurídica e, portanto, necessitam estar em uma relação essencial com uma norma que estatua um ato coativo. Se não se verifica essa relação essencial, a norma não poderia ser interpretada como objetivamente jurídica; passaria a ser considerada como “juridicamente irrelevante”. Em outras palavras, essa norma não poderia ser interpretada como válida .
Kelsen, ao afirmar a nota de coercitividade que é típica do Direito, distingue as normas em razão de sua autonomia para, diante da conduta vedada, impor a sanção correspondente. Em não havendo essa necessária conjugação norma-coerção, está-se diante das normas não-autônomas que seriam – basicamente – dos seguintes tipos:
a) Normas que simplesmente impõem deveres ou obrigações. Não estando em relação direta e essencial com uma norma que imponha a sanção deve se considerar como juridicamente irrelevante. Mantendo-se em relação essencial com uma norma que imponha sanção é juridicamente supérflua pois que a norma que estatuiu a sanção já abarcaria seu conteúdo.
b) Normas permissivas de conduta. Elas são não-autônomas na medida em que apenas delimitam o domínio de validade e alcance de uma norma que proíba determinada conduta.
c) As normas que conferem competência para produzir normas.
d) Normas interpretativas de outras normas.
e) Normas derrogatórias.
Outro é o caso do que aqui se designa como normas independentes: elas não se confundem com o conceito de normas autônomas em Kelsen. Normas independentes, aqui, são aquelas que se presumem válidas e eficazes, que produzem seus efeitos, mas que, por alguma razão, são dotadas de irregularidades. Tais irregularidades – ou vícios – as colocariam fora do Sistema Jurídico. Entretanto, permanecem surtindo seus efeitos porque, para declaração de sua invalidade ou de sua ineficácia, precisam de que um órgão (competente para tanto) efetue o seu expurgo do ordenamento.
Assim explicita SGARBI:
Secularmente, a teoria do direito discute o status desses materiais e o como eles devem ser considerados nos conjuntos normativos. Porque se é comum tê-los como “materiais jurídicos”, é esperável que sejam, ao menos, tidos como materiais diferenciados. Essa diferenciação é freqüentemente explicitada através da adjetivação “irregular” e, as normas que sofrem com essa patologia, de normas “irregulares”. Em suma, por “normas irregulares” têm-se nomeado as normas que foram produzidas sem se atender todas as exigências normativas presentes no conjunto normativo. Na resolução desta questão, como vimos, as ordens jurídicas aparelham suas autoridades normativas com a técnica da “nulificação”. “Nulificar”, assim, é sinônimo de “eliminação” de materiais jurídicos incorretos. Portanto, é mecanismo de modificação do conjunto normativo visto que toda anulação real altera a composição de suas peças afetando direitos subjetivos a esses materiais relacionados.
(...)
No entanto, dessa afirmação não decorre que essas atividades sejam sempre “corretas”, ou seja, que tenham sido desempenhadas de modo adequado ou lídimo. Diz-se, por conseguinte, em nomenclatura básica, que uma norma é “inválida” quando é produzida sem atender aos critérios estabelecidos pelas normas de produção jurídica. “Invalidade”, assim, não se confunde com “inexistência”. Para uma norma “existir”, isto é, pertencer ao conjunto normativo (ainda que incorretamente), basta ser produzida por uma autoridade normativa competente e promulgada; para ser “válida” (adequada às suas exigências) requer-se que “cumpra” toda a regência “procedimental” e “substancial”.
Portanto, uma norma “inválida” é uma norma “existente juridicamente”, mas irregular. Ela pertence ao conjunto normativo, mas de modo viciado, pelo que é passível das técnicas de “nulificação”, por exemplo, do “controle de constitucionalidade” .
Ora, essas normas existentes, mas inválidas, continuam existindo no ordenamento (e produzindo seus efeitos) em razão de um “otimismo” existente de que toda e qualquer norma pertencente a um determinado ordenamento (historicamente definido) é “presumivelmente” válida. Esse otimismo, conforme SGARBI, não se aplica às normas independentes pois que elas (as normas independentes) não podem ser predicadas pela validade/invalidade, mas existem apenas e tão somente em razão da estabilidade política.
Dito isto, há que se observar que essa presunção de validade de toda e qualquer norma produzida (melhor seria dizer existência de toda e qualquer norma, mas não de validade, pois que tal efeito pressupõe outros critérios) não implica em que o Ordenamento não tenha meios para retirar do seu seio as normas que lhe sejam contrárias. Se o vício ou irregularidade afrontar a Constituição tem-se uma inconstitucionalidade, se afrontar uma lei, uma ilegalidade. De todo modo, elas permanecem produzindo seus efeitos enquanto não houver a declaração do órgão competente para tanto. Em regra, tal declaração se dá por meio do Poder Judiciario, mas, em determinados casos, tal declaração (in concreto ou in abstracto) pode ser realizada por Órgãos da Administração ou mesmo do Senado Federal .
Observe-se que o Ordenamento Jurídico Brasileiro ainda tem uma outra peculiaridade: é que o controle de constitucionalidade de normas no Brasil pode ser realizado por qualquer magistrado, durante verificação do caso concreto, e também pelo Supremo Tribunal Federal, seja em relação ao caso concreto, seja no controle abstrato de normas. Isso implica que poderá haver, conforme entendimento diverso de cada magistrado, aplicando-se as normas e o controle de constitucionalidade, normas que sejam consideradas válidas e, ao mesmo tempo, inválidas, a depender da interpretação que se dê.
Feitas tais observações, passa-se agora a analisar os casos de possibilidade (ou não) de existência de normas independentes no Ordenamento Brasileiro, notadamente no que toca à coisa julgada, à Lei ainda Constitucional e à modulação temporal das normas na Declaração de Inconstitucionalidade efetuada pelo Supremo Tribunal Federal.
3. A Coisa Julgada Inconstitucional
Um dos grandes temas a que se dedicam hoje os processualistas é, justamente, os efeitos (ou a produção de) da Coisa Julgada Inconstitucional.
Em regra, o fenômeno da Coisa Julgada Inconstitucional decorre de que determinada norma aplicada pelo Juiz ou órgão judicante, ao caso concreto, seja posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em controle abstrato de normas.
Desse modo, tendo existido decisão transitada em julgado com base em norma posteriormente declarada inconstitucional ter-se-ia, segundo alguns, uma norma (as decisões judiciais, também elas, são normas, aplicadas na concretude do caso apresentado em juízo, conforme Kelsen) independente que produziria efeitos mesmo que estivesse a norma originária da decisão invalidada por declaração formal.
Muito se questiona sobre a possibilidade de reversão de tal sentença transitada em julgado, após a decisão de inconstitucionalidade, por estar ela com vício insanável. E muito se discute sobre qual (ou quais) seriam os remédios a se aplicar para sanear o ordenamento.
Entretanto, aqui se quer crer que mesmo a coisa julgada com superveniência de declaração de inconstitucionalidade, ainda assim não é (ou pelo menos não o é em sentido estrito) norma independente, já que seus efeitos permanecem em razão de comando constitucional.
Isso porque a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, determina que a Lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Ora, se se considera uma decisão judicial como norma, a validade de tal norma se encontra justamente no comando constitucional que determina sua imutabilidade.
Ademais, difícil seria se encontrar um remédio para a nulificação de um ato normativo (a sentença/decisão judicial transitada em julgado) se ele já teria produzido todos os seus regulares efeitos. Exemplifica-se com uma ação de despejo fundada em norma prevista no ordenamento. O despejo, com as conseqüentes sanções, inclusive a execução do débito, já teria ocorrido, v.g., quinze anos atrás e só agora o Supremo Tribunal teria declarado, em controle abstrato, a inconstitucionalidade da norma. Como retirar tal dispositivo (a sentença/decisão) do Ordenamento concretizado? Impossível se retornar ao status quo ante, o que demonstraria aqui que os defensores da independência da norma estariam com a razão.
Ademais, se se tem em conta que a Lei, no comando constitucional, abarca toda e qualquer manifestação normativa do Estado (com força coercitiva) há que se entender que também ali esta incluída a decisão da Suprema Corte. Ou seja, a Suprema Corte, ao declarar a inconstitucionalidade de norma, está normatizando, mormente quando declara em sede abstrata, pois que ela retira do Ordenamento a norma impugnada. E não se pode negar que a decisão judicial é, também ela, uma norma validamente expedida. Discorda-se, portanto, da afirmação de Kelsen de que as decisões judiciais não seriam normas, mas apenas e tão-somente regras de direito.
Aqui se percebe a jurisprudência, ou a decisão judicial, como norma, com poder coercitivo, que afeta as partes e as condiciona ao cumprimento da mesma medida judicial.
Desse modo, percebe-se que mesmo a coisa julga inconstitucional (por declaração superveniente de inconstitucionalidade) não se enquadra no rol de normas independentes porque produziu seus regulares efeitos e porque se encontra a decisão amparada por comando constitucional que impede sua mutabilidade.
Não por acaso o Legislador, numa tênue tentativa de dar solução ao problema, não permitiu a mutabilidade da decisão, mantendo-a intocável. Apenas, na reforma do Código de Processo Civil, retirou um dos requisitos de sua exeqüibilidade. Explica-se; toda e qualquer sentença/decisão transitada em julgado é passível de execução, como titulo judicial que é. Como todo titulo (judicial ou extrajudicial) há alguns requisitos exigidos para a execução, a saber; liquidez, certeza e exigibilidade. A reforma do Processo Civil apenas retirou a exigibilidade do titulo, permanecendo as demais notas características. Assim, mesmo o Legislador não pôde (e não pôde em razão do expresso comando constitucional) permitir a mutabilidade da Decisão transitada, permitindo-se apenas e tão somente que, em estando o título por se executar, ou em execução, não seja exigível e se possa opor contra ele a inconstitucionalidade declarada.
Desse modo, entende-se, contrariamente ao que foi expresso por Kelsen, que toda e qualquer decisão judicial (sentença ou decisão colegiada) é produção de norma entre as partes litigantes. Entende-se mais, que a chamada “coisa julgada inconstitucional” não pode ser considerada norma independente porque a produção de seus efeitos se encontra escorada no comando constitucional que impede a modificação da coisa julgada.
4. A Lei ainda Constitucional
Uma outra forma para se apreciar sobre a possibilidade de existência de norma independente, que produza seus efeitos em razão de “existir”, mesmo que não se possa considerá-la como válida, é a Lei ainda constitucional, mas que se tornará, conforme declaração do Supremo Tribunal Federal, em Lei Inconstitucional.
Assim expressa MENDES:
Em decisão de 23.3.1994, teve o Supremo tribunal federal oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a defensoria pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados [HC 70.514, julgamento em 23.3.1994].
(...)
Da mesma forma pronunciou-se o Ministro Moreira Alves, como se pode depreender da seguinte passagem de seu voto:
Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministerio Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstancia não mais se verificar.
(...)
Fica evidente, pois, que o Supremo Tribunal deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da declaração de inconstitucionalidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei. (destacou-se) .
Ora, tal declaração pode (e deve) ser considerada como uma norma que, a partir da declaração do STF, passa a agir de maneira independente pois que seu fundamento não mais se encontra no Ordenamento Jurídico mas em fatos que ocorrem ao largo do prescrito. O STF, claramente, verifica a inconstitucionalidade da norma, mas, dadas certas circunstâncias (no caso, a ainda frágil estrutura da Defensoria, que a impede de atuar em condições de igualdade frente ao Ministério Público) aceita que a norma, mesmo sendo inconstitucional, produza (e continue produzindo) seus efeitos até que a plenitude dos meios possibilite o expurgo da norma.
Tal fato, por si só, demonstra que, após a declaração da ainda constitucionalidade, que caminha para a inconstitucionalidade, tal norma continua produzindo seus efeitos pois que a própria Corte Constitucional percebe que ela é inválida, mas a mantém existente e dotada de eficácia . E só essa declaração permite, por si só, a certeza de que a norma, após a decisão do STF, passou a existir e produzir efeitos independentemente de sua vinculação ao Ordenamento Jurídico. Mais, a declaração da Corte permite se afirmar com clareza que a norma impugnada não é válida, ela existe e produzirá efeitos apenas e tão somente enquanto uma situação que não pode ser modificada pelo Ordenamento perdurar.
5. A modulação temporal na declaração de inconstitucionalidade de norma pelo Supremo Tribunal Federal
Outra probabilidade de análise da possibilidade de existência de normas irregulares que produzem seus efeitos, permanecendo os mesmos no mundo, é a permissão de modulação temporal dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade pelo STF.
Como se sabe, a Lei permite que o STF, em controle de constitucionalidade, efetue o que se convencionou chamar de modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Isso despontou como novidade no controle de constitucionalidade brasileiro já que a tradição jurídica brasileira sempre considerou que a norma impugnada e declara inconstitucional era nula de pleno direito, não podendo existir nem produzir efeitos desde a sua edição.
Esse conceito de nulidade=inexistência=invalidade de norma considerada inconstitucional prevaleceu no Controle de Constitucionalidade considerando-se, portanto, durante muito tempo, toda declaração de inconstitucionalidade efetuada pela Corte como com efeitos ex tunc, isto é, desde o nascedouro. A declaração de inconstitucionalidade, desse modo, removia, ou buscava remover, não só a norma mas todos os efeitos jurídicos por ela produzidos, esterilizando desde sua promulgação.
Com a possibilidade de modulação dos efeitos da declaração, a Corte Constitucional pôde, a partir daí, modular os efeitos, decidindo-se a partir de que momento a norma deixaria de produzir seus regulares efeitos e seria efetivamente extirpada do Ordenamento.
Assim, a declaração de inconstitucionalidade não mais que dizer que a norma foi expurgada (e seus efeitos) desde o nascedouro, mas que, em circunstancias especificas e mediante aprovação de – no mínimo – 2/3 dos Ministros, pode-se determinar a partir de qual momento ela (a norma) deixará de produzir seus efeitos.
Assim, aquele efeito anterior da declaração (de que os efeitos implicavam no expurgo da norma desde a sua criação) passou a ter permissivo para modulação. Não mais os efeitos ex tunc, mas a possibilidade de se aplicar os efeitos ex nunc ( a partir de agora).
Há que se considerar – portanto – que o STF, quando aplica a modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade, determinando que os negócios e efeitos jurídicos produzidos por aquela norma até a data estipulada são válidos e exigíveis, só tornando a norma ineficaz e inválida a partir do momento da declaração de inconstitucionalidade, está permitindo – claramente – que haja no Sistema Jurídico Brasileiro normas independentes, irregulares, que, apesar de declaradamente não serem válidas (ou por vício formal, ou por vício material), produziram efeitos que continuarão exigíveis em razão da modulação temporal.
6. Conclusão
Buscou-se aqui explicitar o que seria a norma independente. Demonstrou-se que a “norma independente” não equivale à norma autônoma do pensamento de Kelsen pois que essa tem ligação com o elemento de coercitividade e aquela com a questão de sua validade.
Demonstrou-se que a análise das normas não pode se prender ao conceito de validade pois que tal é uma presunção típica do otimismo do Ordenamento que parte do pressuposto que não abriga normas incompatíveis com suas normas de produção de normas. Assim, pode existir normas que, a par de não serem válidas em razão de algum vício, presumem-se válidas e produzem efeitos jurídicos enquanto não expurgadas do Ordenamento por declaração de Órgão competente.
Tais normas, aqui chamadas de normas independentes, podem “existir”, mesmo não sendo “válidas.
Buscou-se demonstrar alguma aplicação desse conceito ao Ordenamento Jurídico Brasileiro pela análise de três possibilidades: a) a coisa julgada inconstitucional; b) a Lei ainda Constitucional; e, c) A modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade.
Ao fim, defendeu-se que a coisa julgada inconstitucional não pode ser considerada norma independente pois que sua imutabilidade decorre diretamente de comando constitucional, tendo o Legislador preservado sua imutabilidade mesmo quando da reforma do Código de Processo Civil.
Entretanto, deixou demonstrado que há aplicabilidade do conceito de norma independente (ou irregular) com seus necessários efeitos (inclusive com perfazimento e aperfeiçoamento de negócios jurídicos válidos) quando se trata de Lei ainda constitucional ou da modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
Quanto à Lei ainda Constitucional, o STF declara claramente que ela é inválida (ou por vício formal ou por vício material) mas, por circunstancias alheias ao ordenamento mas que existem no mundo, dá-lhes o poder de continuarem a produzir efeitos enquanto perdurar a situação apontada. Assim, a Lei ainda Constitucional “existe”, produz efeitos, mesmo com a Corte declarando sua invalidade perante a Constituição, num claro reconhecimento da imperfeição do Sistema.
Quanto à modulação temporal, o STF, em casos específicos, reconhece que a norma é inválida, mas só lhe retira a possibilidade produzir efeitos a partir do momento0 da declaração.
Assim, a norma “existiu” e, contrariando toda a tradição do Direito
Brasileiro, teve reconhecidos os efeitos jurídicos que produziu ao longo do tempo até a modulação. Em outras palavras, o STF reconheceu que ela não era válida (por vício formal ou substancial) mas lhe reconhece os efeitos produzidos, num claro reconhecimento de sua independência frente ao Ordenamento.
Referências Bibliográficas:
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________ Teoria Pura do Direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. 2ª Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
_________ Teoria do Direito (Primeiras Lições). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
REGLA, Josep Aguiló. La derrogación de normas em La Obra de Hans Kelsen. DOXA, 10/1991, pag 223-258.
Assinar:
Postagens (Atom)