EXAME DE ORDEM: MODO DE USAR.
(Perdoem-me pela excessiva quantidade , mas acho que o tema relevante mereça tal aprofundamento)
Três vezes por ano o debate volta à balia: Exame de Ordem. Uma turma grita pela sua inconstitucionalidade, outra pela constitucionalidade e o debate se arrasta sem muita razão de ser.
Hora então de se colocar os pingos nos “is” e deixar claro o que pensamos sobre o Exame.
Primeiro cumpre esclarecer: sou Advogado, inscrito na subseção de Juiz de Fora, Seção de Minas Gerais, tendo sido aprovado no Primeiro e único Exame que fiz, no ano de 2005, após encerrado o Curso de Direito. Logo, tenho minha habilitação para exercer a profissão desde o Juramento em Sessão Solene, no dia 08.02.2006. E tenho orgulho de ser exatamente o que sou: Advogado.
Feito esse esclarecimento, vamos aos costumes.
Preferi rebater, ponto por ponto, os argumentos de suposta legalidade/ilegalidade e constitucionalidade/inconstitucionalidade apresentados. Parece-me claro que o pessoal anda confundindo as estações e há, inclusive, alguns argumentos apresentados que são risíveis.
Como sempre, falarei com a razão, mas também com o fígado. É que não acredito, de forma alguma, naquela neutralidade amorfa, que supõe um ser acima e além de qualquer escolha (na verdade, o método da suposta neutralidade cientifica nada mais é do que tentar vender convicções pessoais como se verdades fossem). Sou, sim, na medida de minha imperfeição, Imparcial. Quer dizer, ao analisar os argumentos busco não dobrá-los à minha vontade, mas demonstrar, por princípio, a verdade/inverdade inerente a cada um dos mesmos argumentos. Logo, não sou neutro. Falo a partir de um ponto e vista determinado e preciso, num recorte cultural onde estou imerso e que me faz ler o mundo a partir das lentes que possuo.
Por óbvio, sou a favor do Exame de Ordem. Mas, calma! Não sou só a favor porque sou a favor. Sou a favor porque ele é plenamente constitucional, inteiramente legal e, pior, extremamente necessário. Vocês verão, conforme eu for analisando os argumentos, que a verdade exige que se diga: o Exame de Ordem é constitucional, legal e necessário. Fosse inconstitucional e eu seria o primeiro a gritar. Fosse ilegal e eu mesmo já teria ajudado muitos Bacharéis a ingressar em juízo. Fosse inútil eu já estaria auxiliando a limá-lo do Ordenamento.
Em breve e apertada síntese, são os seguintes os argumentos dos que se batem contra o Exame[1]:
a) Que o Exame atenta contra o artigo 5º, XIII, da CRFB/88;
b) Que o Exame feriria a Declaração de Direitos Humanos, a Convenção III da OIT, regulamentada pelo Decreto 62.150, de 19.01.68;
c) Ferimento ao art. 209, da CRFB/88;
d) Revogação pela LDB da exigência de Exame.
Esses, os argumentos essenciais dos contrários ao Exame. Poderíamos ampliar o rol, mas apenas esses pontos poderiam, de alguma forma, trazer alguma luz ao debate. Os outros argumentos usados, uns mais, outros menos, apenas floreiam e enfeitam qualquer um desses argumentos acima resumidos.
Vamos, pois, como Jack, por partes:
- Quanto à suposta inconstitucionalidade contra o art.5º, XIII
Reza a Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
.......................................................................................................................................................................................
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Ora, salta aos olhos que o exercício profissional não é obstaculizado pelo Exame de Ordem. É que, ao contrário de muitos cursos com regulamentação profissional e Conselhos de Classe, o Curso Superior de Direito NÃO forma advogados. É essencial que isso fique claro: o curso de Medicina forma Médicos (que buscarão suas especializações nas Residências, mas que se forma Médicos, e nada mais); o Curso de Engenharia forma Engenheiros (nas mais diversas modalidades: elétrica, civil, sanitária e ambiental, de produção, etc., mas todos Engenheiros e nada mais); o Curso de Odontologia forma Cirurgiões-Dentistas (que buscarão, ao depois se especializar em ortodontia, periodontia, mas todos Cirurgiões-Dentistas e nada mais); o Curso de Enfermagem forma Enfermeiros (que poderão se especializar ou fazer residências, mas todos Enfermeiros e nada mais) e por aí vai.
Já o Curso Superior de Direito não forma ADVOGADOS, mas Bacharéis em Direito. Aparentemente é diferença de pouca monta mas faz toda a diferença. Ninguém verá um Convite de Formatura em que se afirma que a Faculdade tal está outorgando grau a Advogados, mas apenas e tão somente a Bacharéis em Direito, e nada mais.
É que, ao contrário das demais profissões regulamentadas, o Curso de Direito serve a diversas outras profissões e carreiras. Como típico Curso Imperial, ele sempre foi voltado para a formação dos Quadros Estatais, estando, portanto, com um leque de interesses e de formação muito mais amplo do que seria o de um advogado. Um Bacharel em Direito pode, logo que terminada a Faculdade, exercer a profissão de Delegado, de Analista do Judiciário, de Fiscal, de Diplomata, entre tantas outras carreiras, privativas ou não do Bacharel em Direito.
Sem contar que a Emenda Constitucional 45, ao propor a exigência de três anos de prática jurídica para os que quisessem ingressar na Magistratura e no Ministério Público, pensava sim que os Bacharéis pudessem ser aprovados no Exame de Ordem, exercer a profissão pelo prazo e assim terem ciência do “outro lado do balcão”. Na primeira oportunidade os Conselhos nacional de Justiça e do Ministério Público permitiram que fosse considerada prática jurídica a pós-graduação. Logo, um Bacharel em Direito pode, hoje, comprovar “prática jurídica” de três anos sem sequer passar perto de um local e prova da OAB, apenas fazendo 3 especializações consecutivas (reparem que os cursinhos preparatórios para concursos da Magistratura e do MP já fazem pacotes: curso preparatório e especialização).
Mas voltemos à vaca fria.
O Estatuto da Ordem, lei em sentido formal e material, determina como requisito fundamental e necessário para ingressar nos quadros da Advocacia a aprovação em Exame de Ordem, delegando, a própria lei, ao Conselho Federal a competência para elaborar os necessários regulamentos do Exame. Alguns questionam a impossibilidade de delegação. Nesse ponto, mesmo o i. PGR considerou plenamente constitucional a delegação legal, pois que feita por lei e sem nenhum vício.
Mas o i. PGR entende inconstitucional o Exame, ao argumento que fere o art.5º, XIII, pois que o Exame, na verdade, não seria qualificação para o Exercício da Profissão. E aí é que reside o erro.
A um, porque o Exame não cerceia o direito de qualquer Bacharel em Direito exercer uma profissão que lhe seja privativa (lembrando: ele pode ser Delegado, Analista Judiciário, Analista dos Tribunais de Contas, Técnico Judiciário, Oficial de Justiça, Escrivão e por aí vai que a lista e grande, isso sem contar as profissões que exigem apenas e tão somente curso superior, sem qualquer especificidade);
A dois, porque o Exame é sim, qualificação necessária e suficiente para o exercício da Advocacia.
(Aqui cabe um puxão de orelhas modesto no i. PGR: a OAB só permite o ingresso dos formandos na Prova por Ação do Próprio Ministério Público que, em ACP, pediu ao Judiciário fosse permitida a inscrição dos quintanistas. Usar esse argumento é, como se diria antigamente, valer-se de sua própria torpeza)
À OAB foi delegada, expressamente, a competência para regulamentar o Exame que nada mais é do que qualificador do Exercício da Profissão. Ele não atesta qualificação, mas qualifica. Explico melhor: o Exame não é mero verificador se o aluno apreendeu ou não o conteúdo dado nas Faculdades; o Exame não é mero atestador de qualificação profissional. Ele, o Exame, é, em si e por si, o qualificador do exercício profissional, cumprindo, com denodo, o que reza o art.5º, XIII, “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Tanto que na Prova Prática (2ª Etapa) é cobrado justamente o trato prático em determinada área escolhida pelo candidato a ingressar nos quadros da Ordem.
Se o exame é quem qualifica (e não atesta ou verifica) é, por decorrência lógica, constitucional, cumprindo os requisitos necessários e suficientes previstos na Constituição (qualificação profissional, exigida em lei).
Assim, não há que se discutir suposta inconstitucionalidade pois que o Exame passa pelo requisito previsto na Constituição.
Que, como conseqüência, as pessoas usem da reprovação no Exame para aferir a qualidade das Faculdades refoge à competência da OAB. Ela tem, sim, um selo de qualidade que distribui às faculdades com ótimo desempenho. Mas esse selo apenas atesta que os Bacharéis em Direito formados naquelas faculdades tem aptidão para o exercício da advocacia. Ou seja, a OAB não verifica qualidade de formação jurídica, mas se aquele curso tem auxiliado a Ordem na qualificação de novos Advogados (lembrando sempre que a qualificação só se dá pela realização do Exame).
Isso não quer dizer que não possa a OAB criticar a abertura indiscriminada de Cursos de Direito Brasil afora, sem nenhuma condição de sequer existirem (temos mais Faculdades de Direito do que toda a Europa Ocidental somada). E a OAB protesta, veementemente, junto ao Conselho Nacional de Educação e junto ao MEC, que faz ouvidos moucos e continua a autorizar o funcionamento de verdadeiros caça-níqueis, inclusive financiando pelo PROUNI cursos que não têm a menor condição de funcionamento.
A OAB, nos pareceres que vem emitindo (de caráter meramente opinativo), vem exercendo, com galhardia, sua função de denunciar os engodos travestidos de Faculdades que proliferam por aí (e o engodo é maior porque, em regra, os formados nelas não conseguiriam ingressar em NENHUMA carreira jurídica, não só na advocacia).
Logo, o Exame de Ordem, instituído por lei, regularmente aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Sr. Presidente da República, é plenamente constitucional.
- Quanto à suposta infração da Declaração OIT e de Direitos Humanos
Aí, nem necessito me alongar. Constituição Nova faz surgir direito novo. Todo e qualquer Bacharel em Direito, ainda que com formação deficitária, aprendeu aquela lição sobejamente ensinada por BOBBIO de que o direito antigo deixa de existir no dia mesmo da promulgação de nova Constituição, operando-se a recepção daqueles dispositivos que não a contrariem. Portanto, qualquer disposição anterior a 05 de outubro de 1988 só ingressou como Direito Novo na nova Ordem Juridica se, e apenas se, concorda com a Constituição.
Assim, se a Nova Constituição permite que a lei lance qualificadoras para o exercício da profissão, nenhuma norma anterior pode prevalecer.
- Quanto ao art. 209 da CRFB/88
Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
Aqui, é o samba do afro-descendente com síndrome de perturbação das faculdades mentais. O referido dispositivo nem direta nem incidentalmente pode levar à discussão da constitucionalidade do Exame de Ordem.
É que tratam de assuntos diferentes. Enquanto o Exame de Ordem, instituído por Lei, qualifica profissional para o exercício da Advocacia, o art. 209 trata apenas e tão somente dos requisitos para funcionamento de cursos, qualidade e normas gerais. Dizer o contrário é confundir alhos com bugalhos. O art. 209 garante sim que um Curso de Direito, por instituição particular ou pública, deva cumprir com as normas gerais, estar autorizado e se submeter à avaliação de qualidade do MEC.
Mas não afeta, nem atenta contra o direito de a Ordem dos Advogados do Brasil, Entidade de caráter público especial (em definição errônea do STF, já que é, como deveria ser, Autarquia Especial), exigir, conforme determina o Estatuto Legal, que o candidato – para se inscrever em seus quadros – se qualifique por meio de Exame que demonstre sua capacidade para o exercício da profissão.
E mais não precisa ser dito.
- Quanto à suposta revogação do Exame pela LDB:
Aqui, de novo, nem se precisa muito de esforço interpretativo para derrubar o argumento. De novo voltamos a BOBIO, que melhor explica as antinomias possíveis.
Explicando melhor: o Direito, como Sistema que é, não tem lacunas nem contradições. Para que possamos operá-lo precisamos pois de algumas ferramentas que excluam lacunas (interpretação, analogia...) e que impeçam contradições. Assim, uma das formas de garantir a higidez do sistema é a velha formula: “Lei Geral não revoga Lei Especial”. Assim, ainda que existissem contradições entre LDB e Estatuto, o Estatuto prevaleceria porque a LDB trata de assuntos gerais relativos à Educação e o Estatuto, LEI ESPECIAL, trata do exercício profissional e regulamenta as necessárias qualificações para que um Bacharel em Direito possa exercer a Advocacia.
Desse modo, a LDB incide sobre os Cursos de Graduação em Direito, nunca sobre o exercício da profissão. Dizer o contrário seria dizer que a LDB revogou o Estatuto da Magistratura ou a Lei Orgânica do Ministério Público, que sempre fizeram exigências não contidas no mero cursar direito.
Ademais, nem se precisaria entrar no mérito de lei geral, lei especial. A Lei Complementar 95, que regula o processo legislativo, deixa claro que as revogações devem ser EXPRESSAS. Logo, se não há revogação expressa, não houve revogação.
É de se lembrar que a Constituição de 1988, reconhecendo a importância da Advocacia, assim a definiu:
CAPÍTULO IV
DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA
Seção III
DA ADVOCACIA E DA DEFENSORIA PÚBLICA
Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
Ora, não se pode crer que tão importante múnus possa não ter qualquer controle para seu exercício. O Advogado, essencial à administração da justiça, é detentor do jus postulandi, o direito de peticionar em nome próprio ou alheio direito ou proteção a direito ameaçado. Dizer que bastaria a mera formação em Direito para o exercício de tão importante profissão é desmerecer a função mais nobre da OAB: qualificar Advogados, aptos e dignos do múnus constitucional.
É isso que vem fazendo a OAB ao longo do tempo: garantindo, dentro das fragilidades humanas, que os Advogados tenham as mínimas competências e qualificações para o exercício da profissão. Nem mais, nem menos.
A OAB aceita em seus quadros, provisoriamente, os alunos dos quarto e quinto anos (7º, 8º, 9º e 10º períodos) como Estagiários e lhes garante, àqueles que querem um dia ingressar nos quadros como Advogados, várias prerrogativas.
Mas para se tornarem advogados não basta que sejam ou tenham sido estagiários (eu o fui, com orgulho); é preciso que comprovem, por meio do necessário Exame de Ordem, se são qualificados para o exercício da profissão. O Exame de Ordem é quem os qualifica para tal exercício profissional.
Médicos podem tirar a vida de pessoas, um advogado incompetente pode destruir a vida dessas mesmas pessoas, por inépcia, por má-fé, por desídia. Um advogado ode arruinar famílias e destruir vidas. Quanto mais instrumentos tivermos para garantir a qualidade dos profissionais, melhor.
É hora pois de reconhecermos que o Exame de Ordem é fundamental para o Exercício da Profissão. Que a OAB apenas qualifica profissionais, não atesta qualidade do ensino nem verifica condições de ensino. Que seria muito mais interessante (em termos financeiros) para a OAB a inscrição de todos na Ordem que os Exames.
Já uma vez a OAB lançou a campanha de defesa das prerrogativas do Advogado com a seguinte sentença: “Sem Justiça, não há democracia. Sem Advogado, não há Justiça”. Nunca uma frase de efeito foi tão verdadeira e tão seriamente ameaçada quanto agora.
(Poderia efetuar citações, arrumar jurisprudência, etc e tal, mas o texto ficaria pesado, técnico, inacessível. Prefiro assim, com a simplicidade de nossa função: ajudar na administração da justiça, com linguagem compreensível e acessível a todos. De todo modo, peço perdão pela largueza do texto e pela falta de suporte teórico mais claramente trazido à colação)
[1] Tomei por base os argumentos esposados pelo I. PGR, em parecer publicado aqui: http://www.conjur.com.br/2011-jul-21/parecer-mpf-sustenta-exame-ordem-inconstitucional
E também a peça de ingresso do RE junto ao STF, limadas as imperfeições gramaticais e de concordância., aqui http://dl.dropbox.com/u/33434062/RE_603583-Inicial.pdf